Inadimplência

Cobrança demais? Isso também dá processo

Mesmo devendo, o consumidor tem limite para ser cobrado e pode até gerar indenização

Foi assim que Goiás começou o segundo semestre de 2025: com quase metade da população adulta inadimplente. Segundo o Serasa, mais de 46% dos goianos com mais de 18 anos têm alguma dívida em aberto. Isso representa 2,6 milhões de pessoas no estado. Em Goiânia, o tempo médio de atraso nas dívidas passa dos 29 meses, e cada inadimplente tem, em média, duas ou mais dívidas no nome.

Não é pouca gente. Nem pouca coisa. E justamente por isso, muita gente acaba se acostumando com cobranças abusivas como se fossem normais. Mas não são. E você não é obrigado a passar por isso.

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A inadimplência, apesar de se tornar rotina para muitos brasileiros, não é sinônimo de perda de dignidade. Mesmo em situação de endividamento, o consumidor continua protegido por uma legislação que garante limites éticos e legais às cobranças. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) é uma dessas ferramentas que asseguram que a dignidade seja preservada, mesmo quando o nome está negativado.

Estar inadimplente é crime?

Estar inadimplente não é crime. A inadimplência é uma situação civil e financeira, não penal. Ou seja, a pessoa que deixa de pagar uma dívida não está cometendo nenhum crime previsto em lei, salvo em casos muito específicos (como cheques sem fundo de má-fé ou fraudes). Portanto, nenhuma empresa ou cobrador pode ameaçar o consumidor com “prisão”, “bloqueio de CPF” ou qualquer medida criminal simplesmente por estar devendo.

É fundamental reforçar isso porque muitas das ameaças recebidas por consumidores em situação de inadimplência apelam para o medo da punição criminal — o que é, além de mentira, um ato de intimidação proibido por lei.

O que é considerado cobrança abusiva?

Nenhum consumidor inadimplente pode ser exposto ao ridículo, nem ser alvo de ameaças ou constrangimentos. Isso significa que, mesmo em débito, você ainda tem direitos. A empresa que cobra precisa seguir regras e manter o respeito em todas as abordagens. Veja algumas situações que caracterizam abuso:

  • Ligações ou mensagens constantes ao longo do dia, principalmente fora do horário comercial (antes das 8h, depois das 20h, e aos fins de semana); o recomendado pelo Procon e por decisões judiciais é que não haja mais de três tentativas de contato por dia e nunca em horários que comprometam o descanso, trabalho ou convivência familiar do consumidor. Isso vale para Whatsapp, SMS ou e-mail;
  • Contato com terceiros, como parentes, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho, expondo ou sugerindo a existência da dívida; isso inclui práticas como deixar recado, perguntar se a pessoa “ainda mora ali” ou se “conhece o devedor”, o que pode constranger e violar a privacidade do consumidor;
  • Uso de linguagem intimidatória, como frases do tipo: “evite bloqueio do seu CPF”, “acionaremos medidas judiciais imediatamente”, “último aviso antes da execução”;
  • Cobranças públicas ou em grupos de mensagens, que podem causar constrangimento indevido;
  • Negativação indevida ou manutenção do nome nos cadastros de inadimplência por mais de 5 anos.

Essas práticas podem causar angústia, sofrimento psicológico e são passíveis de denúncia. Em casos mais graves, podem gerar indenização por danos morais, já que configuram abuso de direito.

Raras são as pessoas que buscam a Justiça em casos assim. Em Aparecida de Goiânia, por exemplo, uma consumidora foi surpreendida com uma conta de água de mais de R$ 2.400, quando o habitual era por volta de R$ 250. Recebeu várias cobranças e precisou recorrer ao Judiciário para comprovar que a dívida sequer existia. Na sentença, ficou reconhecido o exagero como abuso e fixada indenização por dano moral.

Outro exemplo recente envolve uma cobrança excessiva com linguagem intimidadora. O Tribunal de Justiça de Goiás determinou o pagamento de R$ 3 mil a um consumidor por reconhecer que a empresa passou dos limites.

Esses casos mostram que, sim, é possível dever — e ainda assim estar certo. A cobrança pode existir, mas ela não pode ultrapassar o limite do razoável.

E a dívida, caduca?

Popularmente se diz que a dívida “caduca” após 5 anos, mas é importante entender o que isso significa. A dívida não desaparece, mas o credor perde o direito de cobrá-la judicialmente após esse prazo, segundo o Código Civil.

Além disso, a inscrição do nome do consumidor em cadastros como SPC ou Serasa também deve ser retirada após os 5 anos, mesmo que o valor não tenha sido pago. O que pode acontecer, e é legal, é que o credor continue tentando negociar, desde que o faça com respeito e sem praticar abusos.

Muitas vezes, consumidores acabam fazendo renegociações mesmo após a prescrição, sem saber que já não poderiam mais ser processados. Por isso, é importante buscar orientação antes de aceitar qualquer acordo — inclusive para evitar que a renegociação reinicie o prazo de prescrição da dívida.

Quando a cobrança vira indenização

A Justiça brasileira tem reconhecido cada vez mais o direito de consumidores receberem indenizações quando são vítimas de cobranças abusivas. Os valores variam de acordo com a gravidade do caso e as provas apresentadas.

O importante é conseguir documentar os abusos: mensagens salvas, registros de ligações, prints, testemunhas. Em Goiânia e região metropolitana, a Defensoria Pública pode auxiliar gratuitamente consumidores em situação de vulnerabilidade que desejem buscar reparação judicial.

Também é possível recorrer ao Juizado Especial Cível, conhecido como Juizado de Pequenas Causas, sem necessidade de advogado, quando o valor pedido é de até 20 salários mínimos (R$ 28.240, em valores de 2025).

O que fazer se você for vítima de cobrança abusiva?

Se você reconhece alguma das situações descritas acima, veja como agir:

  1. Documente tudo: guarde mensagens, grave ligações (com aviso), tire prints e organize as provas;
  2. Anote os horários e frequências das ligações ou contatos — isso ajuda a demonstrar o abuso;
  3. Não ceda à pressão: você pode negociar, mas deve fazê-lo de forma consciente, sem se sentir coagido;
  4. Denuncie ao Procon Goiás: disque 151 ou acesse goias.gov.br/procon;
  5. Use o site consumidor.gov.br para registrar sua queixa diretamente com a empresa cobradora;
  6. Procure a Defensoria Pública ou um advogado de confiança se sentir que seus direitos foram violados.

Em tempos de juros altos, desemprego e inflação, não é difícil perder o controle das finanças. O que não pode acontecer é que isso vire motivo para ameaças, constrangimentos ou humilhações. Busque conhecer seus direitos e fazer valer o que diz a lei. 

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