Demissões em massa do Itaú expõem possíveis falhas e abusos no trabalho home office
Sem regras claras, empresas adotam critérios questionáveis e transformam o trabalho remoto em terreno instável. Conheça seus direitos

O anúncio de demissão de cerca de 1 mil funcionários do banco Itaú, na última semana, deixou muitos profissionais – e empresas – se questionando sobre os dilemas do trabalho remoto. Os desligamentos foram justificados pela baixa produtividade, baseados em métricas digitais – cliques, tempo de uso da máquina, login e logout nos sistemas. Os argumentos não convenceram nem os ex-funcionários, nem os sindicatos, e ainda criaram um clima de insegurança sobre a modalidade de trabalho.
O episódio deixou exposto o dilema do home office: se, por um lado, ele representa liberdade e flexibilidade, por outro, escancara inseguranças, limites mal definidos e direitos que muitos ainda não sabem que têm.
LEIA TAMBÉM
IA vai criar 170 milhões de novos empregos e um pode ser seu
O que a lei diz (e o que ainda falta dizer)
O teletrabalho é uma modalidade legítima reconhecida pela Convenção das Leis do Trabalho (CLT) desde a Reforma Trabalhista de 2017. Com isso, os direitos básicos de qualquer profissional celetista são os mesmos: carteira assinada, 13º salário, FGTS, férias, INSS, controle de jornada. Mas há nuances que a legislação ainda trata de forma vaga – como os custos operacionais do home office e o monitoramento da jornada e da produtividade.
Quem paga pela internet, energia ou cadeira ergonômica, por exemplo? A resposta, por enquanto, depende do contrato. A legislação entrega a responsabilidade para um acordo entre as partes. Mas há avanços. No setor bancário, por exemplo, a negociação coletiva já garante ajuda de custo superior a R$ 1.100 a partir de 2025.
Controle, sim. Vigilância, não.
Empresas têm o direito de acompanhar a produtividade, claro. Mas há limites – legais e éticos. Relatórios de login, metas de desempenho, entregas e participação em reuniões são válidos. Mas vigilância constante, gravações sem consentimento ou câmera ligada o tempo todo são práticas abusivas, que ferem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a própria dignidade do trabalhador.
O avanço do trabalho remoto durante a pandemia fez com que o Ministério Público do Trabalho elaborasse uma nota técnica ainda em 2020. No documento, o monitoramento deve ser transparente, com respeito à vida privada. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) também elaborou um manual orientando as empresas, reforçando que, mesmo à distância, o empregador deve cuidar da ergonomia, saúde e segurança.
A sensação de estar sempre sendo observado
Entre os demitidos do banco Itaú, a palavra mais citada foi “surpresa”. Poucos sabiam que estavam sendo avaliados por critérios tão específicos. Isso mina a confiança – e confiança é a base do trabalho remoto.
Segundo o advogado trabalhista Diogo Almeida de Souza, a empresa tem sim o direito de acompanhar a jornada e o desempenho do funcionário remoto — mas desde que com coerência e dentro da legalidade. “É possível usar ferramentas como login/logout, metas, relatórios de atividade e até indicadores de produtividade”, explica. Reuniões com câmera ligada, cumprimento de metas e feedbacks constantes também são práticas permitidas. O problema começa quando o monitoramento se torna abusivo: gravações permanentes de tela, escuta sem consentimento, rastreamento excessivo ou coleta de dados sensíveis podem configurar violação de direitos e até assédio.
A chave, segundo ele, está na transparência e no consenso. A empresa deve deixar claro, por contrato, como se dará o trabalho remoto, quais são os parâmetros mínimos exigidos e quais ferramentas serão utilizadas. O trabalhador, por sua vez, tem o direito de apresentar suas condições — e de recusar práticas invasivas. Monitorar tarefas é legítimo. Vigiar o trabalhador como se ele estivesse sendo testado o tempo todo, não. E nesse limite entre controle e abuso, o que deve prevalecer é o respeito. Afinal, confiança não se cobra por software. Se constrói no dia a dia — com clareza, diálogo e equilíbrio. “Monitorar desempenho é legítimo”, explica o advogado. “Transformar o trabalhador em alvo de vigilância constante, não.”
O home office é uma modalidade de trabalho formal, com direitos e deveres. Por se tratar de algo relativamente novo, ainda passa por ajustes tanto da parte empregadora, quanto da legislação. Ainda assim, uma onda de demissões silenciosas serve como alerta: a digitalização não pode atropelar a dignidade. E o trabalho remoto precisa ser, acima de tudo, humano.
O futuro do home office
As demissões no Itaú escancararam falhas atuais, mas também reacenderam um debate maior: qual é o futuro do trabalho remoto? Empresas e sindicatos já não discutem mais se o home office vai continuar, mas como ele será praticado — e, principalmente, sob quais regras.
O Fórum Econômico Mundial projeta que, até 2030, cerca de 92 milhões de empregos devem desaparecer em todo o mundo, impulsionados por transformações tecnológicas, automação e mudanças demográficas. Em contrapartida, serão criados aproximadamente 170 milhões de novas vagas, especialmente em áreas digitais e tecnológicas — o que representa um saldo líquido positivo de 78 milhões de postos, boa parte deles, remota. A transição, no entanto, exigirá adaptação: das empresas, na forma como estruturam o trabalho; dos profissionais, na maneira como se posicionam no mercado; e do Estado, ao garantir direitos num cenário em rápida mutação.
O futuro mais provável é o híbrido. Essa é a aposta de especialistas como Fernanda Mayol, sócia da McKinsey Brasil, que vê o modelo como uma resposta estratégica às demandas de produtividade, engajamento e retenção de talentos. Para Sylvia Hartmann, CEO da Remota, muitas empresas ainda estão tateando esse equilíbrio — e tendem a flexibilizar menos, mantendo o remoto em menor escala. Já Aline Swensson, da Unentel, reforça que a tecnologia — inclusive a inteligência artificial — será fundamental para viabilizar formatos mais sustentáveis de trabalho híbrido, sem abrir mão do bem-estar.
Acordos coletivos mostram que há outro caminho
No Brasil, já há exemplos de que é possível regulamentar o trabalho remoto sem abrir mão da produtividade. No primeiro semestre, a Embraer firmou acordo coletivo com seus trabalhadores administrativos para manter o home office com garantias claras. A decisão foi celebrada como uma vitória: em vez de recuar, a empresa decidiu confiar.
Esse avanço mostra que o diálogo é o melhor antídoto contra abusos — e que o home office não precisa ser um território de insegurança. Com acordos bem construídos, é possível criar relações de trabalho mais equilibradas, transparentes e humanas.
A construção está em curso. E quanto mais cedo o Brasil definir seus próprios parâmetros, maiores as chances de o trabalho remoto deixar de ser motivo de incerteza — e passar a ser sinônimo de confiança.
Confira a íntegra da nota do Itaú
“O Itaú Unibanco realizou hoje desligamentos decorrentes de uma revisão criteriosa de condutas relacionadas ao trabalho remoto e registro de jornada. Em alguns casos, foram identificados padrões incompatíveis com nossos princípios de confiança, que são inegociáveis para o banco. Essas decisões fazem parte de um processo de gestão responsável e têm como objetivo preservar nossa cultura e a relação de confiança que construímos com clientes, colaboradores e a sociedade.”
LEIA MAIS
Geração Z: entre o desânimo e a esperança do primeiro emprego