Murilo Gun: “Reinventar-se virou parte do trabalho”
Em entrevista exclusiva à Descomplicando, o professor de criatividade fala sobre curiosidade, ego e o papel da pausa. Ele explica por que toda criação começa de dentro pra fora.

Murilo Gun nunca planejou ser o que é hoje. Ainda na década de 1990, aos 14 anos, em Recife, criou um site pessoal que lhe renderia dois prêmios iBest e o início de uma curiosidade que o levaria por muitos caminhos. Aos 19, montou sua primeira empresa de tecnologia, a BIT, no recém-criado Porto Digital, e criou o serviço “Peça Comida”, um dos pioneiros em delivery online no Brasil. Com o tempo, o programador virou empreendedor, o empreendedor virou humorista e o humorista, professor de criatividade.
Nada disso foi calculado. Uma coisa levou à outra. Formado em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco, Murilo descobriu a veia cômica ao escrever o discurso de orador da turma, em 2006. Começou fazendo shows em bares de amigos, ainda mantendo a empresa. Aos poucos, a arte ocupou o espaço que antes era dos negócios. Em 2008, mudou-se para São Paulo, fez turnês de stand-up, teve programas no SBT, Multishow e Comedy Central.
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Depois de uma década no humor, veio outra virada, novamente movida por inquietação. Em 2014, aos 33 anos, foi aceito na Singularity University, no Vale do Silício, onde estudou futurismo e inovação ao lado de um seleto grupo de pessoas de todo o mundo e, mais uma vez, foi o orador. De volta ao Brasil, fundou a Keep Learning School, acumulou milhares de alunos e, cinco anos depois, decidiu fechar o projeto e disponibilizar todo o conteúdo sobre criatividade e pensamento criativo gratuitamente.
Hoje, aos 44 anos, casado e pai de duas filhas, Murilo se dedica a palestras, imersões e eventos sobre criatividade, reinvenção e autoconhecimento. “A mente criativa é a que se permite brincar com o desconhecido”, costuma dizer. Para ele, inovar é um movimento interno, um retorno à curiosidade que o fez, desde menino, transformar cada fase da vida em uma constante reinvenção de si mesmo.
Murilo estive em Goiânia no último fim de semana, no encerramento da Feira do Empreendedor. Antes de subir ao palco, concedeu entrevista exclusiva à colunista do Descomplicando, Letícia Nobre, e falou sobre o que realmente significa inovar, o papel do medo, a importância de desaprender e por que o futuro do trabalho depende, mais do que nunca, de sermos humanos.
“A gente vive em modo memória, não em modo imaginação”
Descomplicando — Você costuma dizer que a criatividade não é um talento, mas uma competência que todos têm, e que a maioria esqueceu como usar. O que nos fez perder esse acesso natural à criatividade?
Murilo Gun — A criatividade é uma habilidade natural da espécie humana, assim como falar ou andar. Todo ser humano nasce criativo. O que acontece é que o mundo nos treinou a usar mais a memória do que a imaginação. A escola nos ensinou a repetir, a decorar, a dar a resposta certa — e isso mata a curiosidade. Quando viramos adultos, continuamos decorando processos, fórmulas, hábitos. Criar é justamente o contrário: é conectar coisas que já existem de um jeito novo. Só que pra isso você precisa desapegar do que já sabe. E muita gente tem medo desse vazio.
Descomplicando — Vivemos cercados de informação, notícias, cursos e notificações. Você costuma dizer que a mente criativa precisa de silêncio, mas isso parece impossível hoje. Por que o excesso de estímulos mata a criatividade?
Murilo Gun — Criar requer espaço. O excesso de estímulos matou o silêncio interno. A mente está sempre cheia de notificações, tarefas, ansiedade. O cérebro precisa de pausas pra processar o que vive e fazer novas conexões. Quando a gente está ocupado demais, a criatividade morre sufocada. É por isso que as melhores ideias aparecem no banho, lavando louça, dirigindo. É nesses momentos de ócio que o cérebro faz o que chamo de “download do invisível”. A produtividade sem pausa mata a imaginação.
Descomplicando — Você diz que o medo é o maior bloqueador da criatividade. Para quem empreende, esse medo pode ser o de errar, de não vender, de não dar conta. Como transformar o medo em aliado do processo criativo?
Murilo Gun — O medo não é o inimigo. Ele é um alarme, mostra onde ainda há apego. O problema é quando o medo dirige o carro. A criatividade precisa de espaço para arriscar, e o medo quer previsibilidade. Quando a gente entende que o erro faz parte do processo, o medo muda de lugar: ele deixa de travar e começa a sinalizar. O erro é parte da inovação. O medo existe, mas ele não precisa mandar em você.
“Reinventar-se é uma competência de sobrevivência”
Descomplicando — Sua própria trajetória, da programação ao empreendedorismo, passando pela comédia, é uma prova prática de reinvenção. Por que essa habilidade se tornou tão importante, especialmente para quem empreende?
Murilo Gun — Porque o mundo muda o tempo todo, e quem não muda, quebra. Isso vale pra empresa e pra gente também. Reinventar-se não é começar do zero, é reinterpretar o que já existe. É olhar pra dentro, ver o que já não serve e transformar. É igual a um software: precisa de atualização. Se o mundo é beta, a gente também tem que ser. Empreender é isso: lidar com o imprevisível, testar, errar, corrigir, tentar de novo. Por isso eu digo que empreender é a forma mais prática de se reinventar. A inovação não está em criar algo inédito, mas em ver o que ninguém estava vendo — e ter coragem de agir.
Descomplicando — Você costuma dizer que o primeiro passo para criar é desaprender. O que precisamos desaprender para viver e trabalhar com mais criatividade?
Murilo Gun — Precisamos desaprender a buscar o certo o tempo todo. A escola ensinou que errar é fracassar, e o medo do erro matou a experimentação. Criar é brincar com o erro, é aprender testando. Também precisamos desaprender a buscar aprovação. Quando você tenta agradar, você repete o que o outro quer ouvir. Criar é o oposto: é expressar o que você acredita, mesmo sem garantia de aceitação. O processo criativo começa quando você se permite não saber.
Descomplicando — Você fala sobre “brincar” como estado criativo original. O que perdemos quando deixamos de brincar e o que poderíamos recuperar com mais leveza no trabalho e na vida?
Murilo Gun — Brincar é o estado criativo original. É quando a gente se permite experimentar sem medo. Quando criança, ninguém tem medo de errar ou parecer ridículo. Depois que crescemos, confundimos seriedade com rigidez. Só que a rigidez mata a curiosidade. Eu costumo dizer que brincar com a vida é diferente de levá-la na brincadeira. Quando você brinca, você está aberto ao novo. Quando tenta controlar tudo, você repete.
Descomplicando — Lidar com o novo, com o incerto, assusta muita gente. O que muda quando aceitamos que o desconhecido faz parte do processo criativo?
Murilo Gun — O medo nasce da necessidade de controle. Criar é lidar com o que ainda não existe, então é natural sentir medo. Mas a criatividade é filha da incerteza. O que precisa mudar é a relação com o desconhecido. Quando você aceita não saber, começa a perceber o que pode aprender. É nesse espaço, entre o que eu sei e o que eu ainda não sei, que o novo acontece.
“A pausa é o novo trabalho”
Descomplicando — Você diz que “a pausa é o novo trabalho”. Em tempos de hiperprodutividade, essa frase parece quase uma provocação. O que significa parar para poder criar?
Murilo Gun — Parece contrassenso, mas é o contrário. A pausa é o novo trabalho. A gente vive no piloto automático, respondendo rápido, produzindo sem pensar. Só que o cérebro precisa de tempo pra reorganizar as ideias. A pausa é o momento em que o cérebro cria. Quem quer inovação precisa parar de repetir. É contraintuitivo, mas desacelerar é o que acelera o processo criativo.
Descomplicando — Você teve uma carreira marcada pelo fazer: humorista, empreendedor, apresentador, professor. E um dos seus bordões era “Hard Work, Papai”. Quando ele deixou de fazer sentido para você?
Murilo Gun — Quando percebi que eu estava sempre produzindo, mas raramente presente. Eu estava no modo “fazedor”, sempre buscando o próximo projeto, o próximo resultado, a próxima conquista. Só que quanto mais eu fazia, menos eu sentia. O hard work é a lógica de fora pra dentro: trabalhar mais pra conquistar mais. Só que chega uma hora em que isso não sustenta. O inner work — o trabalho de dentro pra fora — é o que dá sentido ao resto. Foi nessa virada que percebi que não queria mais ser movido pela escassez, e sim pela curiosidade. Quando o fazer não compensa o não ser, é sinal de que está na hora de mudar o rumo.
Descomplicando — Você também fala sobre o impacto da inteligência artificial no trabalho. O que muda na forma de empreender quando máquinas aprendem a fazer o que antes era humano?
Murilo Gun — As máquinas não vão substituir os humanos, mas as partes humanas que se comportam como máquinas. O que a inteligência artificial copia é a repetição. Se o seu trabalho é previsível, ele vai ser automatizado. Mas a IA não cria sentido, não tem empatia, não imagina. O que é verdadeiramente humano — a criatividade, o olhar sensível, o improviso — isso não tem código que replique. Então o desafio é deixar de ser mecânico. É ser mais humano, não menos.
Descomplicando — Muitos empreendedores associam criatividade à invenção, mas você costuma dizer que ela é sobre criar sentido. Como isso se aplica ao trabalho?
Murilo Gun — A criatividade é o que transforma o trabalho em algo com propósito. Não é só pra criar produtos, é pra criar significado. O empreendedor criativo não é o que inventa coisas novas, mas o que dá novo sentido ao que já existe. Criar é alinhar o fazer com o ser. Quando você conecta o trabalho com quem você é, o resultado tem alma.
Descomplicando — Você já afirmou que criatividade é espiritualidade em ação. O que quer dizer com isso?
Murilo Gun — Criar é um ato espiritual porque é o momento em que você se conecta com o invisível, com algo maior do que você. Quando você cria, está canalizando algo que não estava ali antes. É o oposto do controle, é entrega. E é aí que nasce o propósito: quando o que você faz passa a servir algo além de você.
Descomplicando — E pra quem sente que precisa se reinventar, mas não sabe por onde começar, qual é o primeiro passo?
Murilo Gun — Começar desaprendendo. O primeiro passo é lembrar quem você é, não o que o mundo quer que você seja. Criar é isso: lembrar da sua essência. Quando você volta pra esse lugar, o novo vem naturalmente.
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