EUROPA

A hegemonia dos gigantes do futebol europeu é irreversível?

Parece notícia velha, mas não é. A Juventus foi campeã italiana no domingo, como já…

Parece notícia velha, mas não é. A Juventus foi campeã italiana no domingo, como já havia acontecido nos últimos oito anos. Um mês antes, o Bayern de Munique conquistou o Alemão pela oitava temporada seguida. E, mesmo na França, onde o coronavírus encerrou o campeonato, o PSG ficou com a taça pela sétima vez em um intervalo de oito anos. Definitivamente, gritar “é campeão” se tornou para poucos.

Levantamento do jornal O Globo mostra que, nas décadas de 1980 e 1990, as cinco principais ligas da Europa — Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França — tiveram 24 campeões diferentes. Mas essa diversidade está se esvaindo, e os anos 2010 chegarão ao fim com apenas 16 campeões distintos nas mesmas cinco ligas.

É preciso voltar justamente à década de 1990 para entender como a elite do futebol europeu começou a se desgarrar. Em 1995, graças à Lei Bosman, jogadores da União Europeia deixaram de ser considerados estrangeiros, o que permitiu que os clubes mais ricos do continente buscassem os melhores talentos nos países vizinhos, sem restrições. O time de galácticos que o Real Madrid montou na virada do século é um produto direto dessa flexibilização.

O outro fator determinante foi o fair play financeiro, que impôs regras de boa administração e reduziu o poderio dos irresponsáveis.

— Quando o fair play financeiro apertou os maus gestores e freou os donos que colocavam dinheiro sem fim, os clubes bem estruturados começaram a nadar de braçada — pontua o economista Cesar Grafietti, especialista em gestão e finanças do esporte.

A hegemonia da Juventus na Itália é um reflexo disso. A Velha Senhora dividia os holofotes com os rivais de Milão. Mas, quando os cartolas da Internazionale e do Milan passaram a pecar no controle das finanças, o desnível esportivo deu as caras.

Hoje, clubes como a Juventus, o Bayern de Munique e o Real Madrid se beneficiam de um círculo virtuoso, em que a chave é a capacidade de atrair interesse a nível global. Quanto mais fãs um time tem, mais dinheiro ele arrecada com patrocínios em escala global, direitos de transmissão, bilheteria e outras receitas. A partir daí, pode investir na contratação de jogadores e em estrutura, o que aumenta suas chances de título. Consequentemente, maior é a probabilidade de formar novos torcedores que reforçarão esse círculo.

O SARRAFO DOS 100

Alguns clubes ascenderam por caminhos alternativos, casos do PSG e do Manchester City, que recebem injeção de recursos do Qatar e dos Emirados Árabes Unidos, respectivamente. Mas órgãos de controle e times tradicionais trabalham para minar iniciativas do tipo. É por isso, por exemplo, que a venda do Newcastle para o fundo soberano da Arábia Saudita não saiu do papel.

Tornar-se um campeão de maneira orgânica é raro e, para muitos, efêmero. Basta recordar a campanha histórica do Leicester em 2015/2016. É improvável que os Foxes, por mais eficientes que sejam, façam frente às principais forças da Inglaterra. Ainda mais no contexto atual, em que essas potências têm liderado campanhas cada vez mais dominantes, aproximando-se ou passando dos 100 pontos.

O Leicester faturou uma Premier League atípica ao somar 71 pontos, muito abaixo dos 99 que o Liverpool fez neste ano ou dos 100 e 98 que o Manchester City acumulou em seu bicampeonato.

— É uma tendência. No fim dos anos 1990, era possível ser campeão espanhol com pouco mais de 80 pontos, por vezes até menos. O duelo Guardiola x Mourinho transformou La Liga em assunto de 100 pontos. Nas ultimas 11 edições do torneio, apenas nas duas últimas o campeão teve menos de 90 — aponta o colunista do GLOBO Carlos Eduardo Mansur.

Enquanto isso, as principais ligas estudam maneiras para garantir um mínimo de imprevisibilidade aos torneios, no que devem bater de frente com os gigantes.

— As ligas têm interesse em que haja mais competitividade, não à toa elas reequilibraram o dinheiro da TV. Se as hegemonias se repetirem, há o risco de as competições locais perderem relevância comercial e o dinheiro migrar para um torneio com mais chances de disputa — alerta Grafietti.

ELITE DA ELITE

Essa competição pode ser uma inédita superliga de clubes. Trata-se de um projeto capitaneado pelo presidente do Real Madrid, Florentino Pérez, que pretende reunir as 40 principais marcas do continente (em duas divisões de 20 clubes) para um torneio com potencial gigantesco de receita.

Diz-se até que os merengues topariam abandonar o Campeonato Espanhol, o que desagrada a liga espanhola, é claro, mas também a Uefa, que teme a perda de prestígio da Champions.

É evidente que, caso prospere, o projeto reunirá investimento e interesse instantâneos, mas, no longo prazo, as consequências podem ser danosas ao jogo.

— Do ponto de vista dos gigantes, uma superliga faz sentido. Mas, se ela acontecer, será perversa para o mercado. Você vai dar mais um passo pra consolidar poucos clubes e vai matar outros que têm importância para o ecossistema — alerta o jornalista Rodrigo Capelo, que se debruça sobre a relação entre finanças e o futebol em seu blog no ge. Ele teme os efeitos dessa concentração na formação de talentos.

Também é preciso estar atento ao risco de se criar uma “elite da elite”. Clubes que são forças nacionais em seus países poderiam se tornar coadjuvantes nessa superliga, o que impactaria na percepção do mercado.

— Alguém vai ser campeão, mas alguém vai ficar em último. Os clubes vão querer essa mancha? — questiona Mansur.

Um exemplo desse conflito se deu na Liga das Nações, torneio criado para preencher de maneira mais atraente o calendário das seleções europeias. A Alemanha foi lanterna de seu grupo na edição de estreia, mas, para protegê-la do descenso, o formato do torneio foi alterado e seu rebaixamento, cancelado.

Com a superliga ainda no campo das ideias, é prudente vislumbrar a próxima década dentro de cada fronteira, o que já se mostra desafiador por conta da imprevisibilidade imposta pela pandemia do novo coronavírus.

Grafietti observa que “os próximos dois ou três anos” serão fundamentais para entender se as ligas nacionais continuarão tomadas por hegemonias. E acredita em cenários distintos:

— Na Espanha e na França, é difícil que apareçam clubes com a capacidade de competir com Real, Barcelona e PSG. Mas, na Itália, vejo a Inter e o Milan rumando para esse patamar de equilíbrio financeiro e força de investimento. Já a Inglaterra continuará com quatro ou cinco clubes na briga.

Há ainda o caso do Bayern de Munique, excepcionalmente forte porque combina como nenhum outro um grande número de torcedores e um intenso aporte financeiro de seus acionistas.

Vem da Itália, portanto, a expectativa de reequilíbrio no curto prazo. Clara Albuquerque, correspondente que cobre a Série A para o canal Esporte Interativo, vê sinais dessa mudança:

— O último título da Juventus veio numa das temporadas menos brilhantes dessa sequência e em um momento de evolução do campeonato, onde equipes de meio de tabela tiraram pontos importantes dos primeiros colocados, incluindo a própria Juventus. A perspectiva é que essa hegemonia diminua.