INVERSÃO

Advogados estranham ação contra jovem negro que comprou bicicleta furtada no Rio

Uma semana depois de ser acusado falsamente de furtar uma bicicleta elétrica, o instrutor de surfe…

Uma semana depois de ser acusado falsamente de furtar uma bicicleta elétrica, o instrutor de surfe Matheus Ribeiro, 22, passou de vítima a investigado na delegacia do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro. Descobriu-se que o seu veículo, que havia comprado pela internet, era produto de outro furto.

A iniciativa de iniciar uma apuração contra ele pelo crime de receptação no último sábado (19), porém, gerou críticas sobre uma suposta recriminalização do jovem, que é negro. Para advogados consultados pela Folha, abrir uma investigação em um contexto como esse de fato é incomum.

Ribeiro aguardava a namorada em frente a um shopping no Leblon no dia 12 quando um casal branco se aproximou e o questionou sobre o roubo de sua bicicleta, o que o fez denunciá-los por racismo —segundo a polícia, o crime foi cometido por Igor Martins Pinheiro, 22, preso na sexta (18).

“Causa estranheza esse tipo de investigação [por receptação], desconheço outros casos nesse sentido. Talvez pela repercussão midiática”, diz Thiago Minagé, presidente da Abracrim-RJ (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas).

“Se [o comprador] não sabe que é produto de crime, não há como caracterizar receptação, salvo se as condições de aquisição forem absurdamente desproporcionais. E mesmo assim é importante não confundir um ‘negócio vantajoso’ com receptação”, ele afirma.

O crime em questão é descrito no Código Penal como “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime”, que prevê um a quatro anos de prisão e multa.

Uma possibilidade é que o caso de Ribeiro seja enquadrado na forma culposa do delito (sem intenção), no parágrafo que diz: “Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso”, com reclusão de até um ano e multa.

Outro trecho da lei também diz que, nessa hipótese, se o criminoso é primário, o juiz pode deixar de aplicar a punição considerando as circunstâncias.

Em nota sobre a nova investigação, a polícia disse que o jovem “disse não possuir [nota fiscal do produto] e não se lembrar do nome da pessoa que o vendeu. Posteriormente, Matheus apresentou na delegacia um comprovante em nome da namorada no valor de R$ 3.600, preço bastante inferior ao de mercado”.

Também escreve que “a pessoa que vendeu a bicicleta para Matheus já foi identificada e, em seu depoimento, em nenhum momento diz que apresentou algum tipo de documento para Matheus. O que este outro investigado afirma é que avisou a Matheus desde o início que não possuía nota fiscal e por isso o preço estava abaixo do mercado”.

A apuração pegou o instrutor de surfe de surpresa. “A gente está lutando por uma inocência em um caso, e a gente vai ter que provar nossa inocência em outro”, declarou ele em entrevista ao Fantástico, dizendo que por ser uma bicicleta usada não desconfiou do preço —cerca de metade de uma nova— e que pediu a nota, mas o vendedor não a enviou. A Folha não conseguiu contato com ele.

Para o advogado criminal Guilherme Furniel, a desproporção nos valores precisaria ser muito gritante para se supor a receptação culposa, o que também depende de um levantamento feito pela polícia em sites de revenda e tabelas de preços, além da interpretação dos delegados e do Ministério Público.

“Fazendo uma busca rápida na internet, achei dezenas de bicicletas por preço igual ou menor. Não acho que foi algo tão desproporcional”, diz ele, acrescentando que a lei não obriga a população a andar com a nota fiscal de suas propriedades.

Furniel também cita a forma como a apuração começou. “É comum, sim, a investigação de receptação culposa de carros ou celulares frutos de roubos de carga, por exemplo. Mas nesse caso ela me parece mais iniciada por um caso fortuito e uma divulgação midiática”, declara.

Antônio Santoro, professor de processo penal da UFRJ (Universidade Federal do RJ), concorda. “A investigação por receptação normalmente se faz porque alguém comunicou que teve um bem roubado, e aí a polícia acha esse bem e a pessoa com o bem é investigada. Ou porque existe uma suspeita de uma rede de comércio de coisas roubadas”, afirma.

Ele opina que há uma inversão da lógica investigativa no caso, que retrata o racismo estrutural da sociedade. “Para investigar uma receptação você investiga tudo, o site, os fatos, e não uma pessoa. Senão você não está preocupado em saber o que aconteceu. Há uma seletividade”, analisa.

Segundo a Polícia Civil, a apuração contra Ribeiro foi aberta após uma perícia feita para confirmar se as bicicletas dele e do casal Mariana Spinelli e Tomás Oliveira eram idênticas, como eles alegaram, e “para constatar a tipificação do crime: calúnia, racismo, ou qualquer outro”.

Ainda segundo a corporação, “posteriormente foi apontado que a chave da bicicleta que estava com Matheus era visivelmente adulterada de uma moto Honda”. O jovem diz que também não desconfiou disso porque o proprietário poderia ter perdido a chave e feito uma cópia.

Questionada, a polícia disse que ainda não tem a informação sobre o site no qual Ribeiro comprou a bicicleta, já que o comprovante apresentado por ele não era desse site. Apesar de esse comprovante estar em nome da namorada, nem ela nem a empresa estão sendo investigadas.

“O inquérito segue em andamento e apura também o furtador da bicicleta”, afirma, subtraída em fevereiro em Ipanema. O veículo foi apreendido e seria “devolvido ao seu legítimo proprietário”, segundo nota divulgada no sábado.

Na sexta, a defesa de Matheus Ribeiro pediu que a outra investigação, de racismo contra o casal, passe para a Delegacia de Crimes Raciais e Intolerância (Decradi). A delegacia do Leblon tem tratado a ocorrência como calúnia.

“Entre outras coisas, argumentamos que a interpretação apenas pelo crime de calúnia causou estranhamento e revolta na comunidade negra e antirracista”, escreveu o advogado Bruno Cândido nas redes sociais. Ele alega que a unidade também descumpriu uma lei estadual de 1994 que obriga delegacias a registrar ocorrências quando a vítima alegar racismo.

Procurada, a Polícia Civil respondeu que “o caso segue em apuração na 14ª DP (Leblon), unidade com atribuição legal para investigar o fato”. “Não existem nos autos, até o presente momento, nenhuma prova da existência do crime de injúria racial ou racismo. O fato foi registrado e segue em apuração em estrita obediência a Constituição Federal e ao Código de Processo Penal”, diz.