CRIME

Bebida domina aldeias de MS onde indígena foi estuprada e morta, diz Procuradoria

Com um em cada cinco habitantes sendo usuário de bebidas alcoólicas ou drogas como maconha…

Com um em cada cinco habitantes sendo usuário de bebidas alcoólicas ou drogas como maconha e cocaína, a população indígena de Dourados tem uma média registrada de 400% de homicídios superior a de não-indígenas em Mato Grosso do Sul, segundo dados apontados pelo Ministério Público Federal.

A situação de precariedade e vulnerabilidade social a qual estão expostos os 20 mil habitantes das duas principais aldeias da cidade, Jaguapiru e Bororó, ficou exposta mais uma vez após o estupro e morte da menina da etina Kaiowá Raíssa da Silva Cabreira, 11, no último dia 9. O tio, preso suspeito de participar do crime com outro adulto e mais três adolescentes, foi achado morto dentro da delegacia.

Segundo as lideranças indígenas, 99% dos crimes registrados nos dois locais tem origem no uso de bebidas alcoólicas e drogas, um problema disseminado e de difícil solução, na visão deles, e ignorado pelas autoridades.

Desde 2017, a Procuradoria e as defensorias públicas da União e de Mato Grosso do Sul ajuizaram ação civil pública para que os governos das três esferas fossem obrigados a implementar políticas públicas de enfrentamento ao uso de drogas nas reservas indígenas de Dourados.

Segundo a polícia, Raíssa foi jogada de uma altura de quase 20 metros após ser estuprada coletivamente por três adolescentes, de 13, 14 e 16 anos, um adulto, de 20, e o próprio tio, Elinho Arévalo, 34. Todos eles, da mesma aldeia que a vítima, foram detidos suspeitos de praticar o crime. Segundo a polícia, eles confessaram que o crime foi executado após consumirem bebidas alcoólicas por todo o dia.

Arévalo, segundo a polícia e o Imol (Instituto Médico e Odontológico Legal), se suicidou na última quinta-feira (12), na cela da Penitenciária Estadual de Dourados. Em seu depoimento feito após sua prisão, divulgado pelo delegado Erasmo Cubas, responsável pelo caso, disse que estuprava a sobrinha desde que ela foi morar com ele, quando tinha 5 anos, em um barraco precário, sempre sob o efeito de bebidas. “Era como se o diabo saísse do corote e entrasse dentro de mim”, disse.

Seu então companheiro de cela, o outro homem preso pelo crime, disse à polícia que Arévalo decidiu se suicidar “como forma de aliviar o peso do vício.”

“Todos os crimes violentos que atendemos nas aldeias vêm do uso do álcool e de drogas. O próprio jovem preso pelo crime da Raíssa: ficamos por horas esperando ele se recuperar dos efeitos da pinga para colher seu depoimento”, disse o delegado Cubas à Folha.

O adulto segue detido e os adolescentes, apreendidos. A polícia investiga se eles podem ter praticados outros estupros na aldeia Bororó.

Além de uma primeira adolescente que estava bebendo com Raíssa e os dois menores que não acompanhou o grupo até a pedreira onde aconteceu o crime, a polícia identificou outra jovem, de 13, que confessou beber regularmente com o tio da vítima e disse à polícia que ele era conhecido por oferecer álcool até a crianças. Segundo Cubas, contudo, ela negou que já tivesse feito relações sexuais com Arévalo e que soubesse dos estupros sofridos pela colega.

CONSUMO DE DROGAS E ÁLCOOL

A naturalidade com que crianças e adolescentes falam de bebidas alcoólicas, contudo, não chocou autoridades. Dourados tem a maior concentração de população indígena do país.

Segundo ainda a Procuradoria, desde 2012 o Brasil teve taxa média de 29,2 homicídios por 100 mil habitantes. Em Mato Grosso do Sul, a taxa foi de 26,1. Entre os indígenas do estado, contudo, este número sobe para 55,9. Já os indígenas das reservas de Dourados enfrentam uma taxa de 101,18, número quase 400% superior a dos não indígenas de Mato Grosso do Sul.

Os casos de violência doméstica e sexual do relatório oficial do Distrito Sanitário Especial Indígena local (DlSEI/MS) revela que os determinantes sociais impactam diretamente na saúde.

“A precariedade da segurança pública, educação deficitária, alimentação e habitação inadequadas, carência de projetos voltados para a geração de renda e emprego e a ausência de políticas públicas para os indígenas refletem no alto índice de violência, consumo de drogas e álcool, mortalidade infantil e os alarmantes índices de homicídio e suicídio”, diz o texto, revelado pelo Ministério Público Federal.

Em nota, a Procuradoria afirmou que chegou a propor em 2019, junto das defensorias, um acordo extrajudicial aos governos federal, estadual e municipal, “contemplando a implementação e execução de políticas públicas condizentes com a atribuição de cada um dos entes.”

O acordo não chegou a ser homologado porque, segundo a Procuradoria, o governo estadual informou que a ação que lhe caberia (criar ações sociais e de saúde) dependia de aprovação de projeto da Assembleia Legislativa.

“Esperamos que esse fato grave promova uma reação dos poderes públicos e que, efetivamente, mais medidas destinadas aos povos indígenas”, disse à reportagem o procurador da República em Dourados, Marco Antonio Delfino de Almeida.

Há 30 anos trabalhando a questão indígena no estado, o psiquiatra Juberty Antonio de Souza, presidente da Academia de Medicina local, diz que o abandono dos indígenas de Dourados é uma condição que persiste e não tem a devida atenção.

“Faz muitos anos que a gente briga por essas coisas. E o que acontece é que nós verificamos eles acotovelados, sem ter nenhum tipo de política pública de uma forma constante e adequada”, disse Souza.

Se em Dourados já não há um atendimento adequado da população para a saúde mental, ainda segundo o psiquiatra, nas aldeias esse problema é ainda pior, agravada pela miséria e vulnerabilidade. “A região tem alto indício não só de doentes pelas bebidas alcoólicas e drogas, mas de suicídio. E que continua presente. Necessita uma discussão antropológica para conter a ação discriminatória da sociedade não-indígena, falta de recursos apropriados para as aldeias e um acompanhamento médico satisfatório”.

“A gente faz o que pode, mas sozinhos praticamente a gente não pode fazer nada. Está tudo dominado pelo comércio ilegal (de bebidas) e tráfico”, resumiu à Folha o líder indígena da aldeia Jaguapiru, Isael Morales, o Capitão Neco.

Segundo ele, a situação na aldeia é de lotação. “Faz tempo que estamos vivendo um em cima do outro. Tem barraco que abriga até 15 pessoas e isso é desumano. Nem bicho vive assim. Temos que unir as nossas forças e continuar lutando, mas é uma batalha muito dura porque toda essa realidade de consumo de álcool vem de berço e passa de pai para filho”.

Na opinião do líder indígena, além de comida e água, eles precisam de projetos para fortalecer as famílias, “e impedir que as nossas crianças tenham contato com todos esses males que destroem a nossa comunidade, como o álcool e as drogas”.

Em nota, a Prefeitura de Dourados, sob comando de Alan Guedes (PP), disse ser sensível à questão, e “lamenta profundamente a violência envolvendo a criança indígena e informa que, dentro das limitadas atribuições que lhe cabe, tem atendido a comunidade indígena”.

O município, ainda segundo a nota, mantém projetos na área de educação, assistência social e saúde dentro das reservas.

“Porém, cabe ressaltar que, por se tratar de uma área federal, com índios tutelados pela União, a grande maioria das atribuições estruturantes, políticas públicas e investimentos é de competência do Governo Federal, que possui e já possuiu vários convênios com o governo do estado, principalmente na área de segurança pública e alimentação. O município atua como suporte”, diz a nota.

Procurados, o governo do estado, sob gestão de Reinaldo Azambuja (PSDB), e a Funai (Fundação Nacional do Índio), autarquia federal, não responderam até a conclusão da reportagem.