DESCOBERTA

Documentos do Itamaraty revelam operações de apreensão de navios do tráfico de escravizados no século XIX

Papéis integram um acervo de 25.877 páginas distribuídas em 164 processos da Comissão Mista Brasil Grã-Bretanha.

Documentos preservados pelo Itamaraty sobre navios apreendidos no século XIX permitem reconstruir aspectos do tráfico de escravizados para o Brasil. O material reúne relatos obtidos em abordagens feitas, em grande parte, por navios britânicos. De acordo com o jornal O Globo, as informações incluem mortes, falta de mantimentos e registros de marcações no corpo de africanos, como nomes de futuros “donos”. Os papéis integram um acervo de 25.877 páginas distribuídas em 164 processos da Comissão Mista Brasil Grã-Bretanha.

O conteúdo foi digitalizado e disponibilizado ao público em setembro no site atom.itamaraty.gov.br. O trabalho durou seis meses e custou cerca de R$ 250 mil. A iniciativa está incluída em um programa financiado por R$ 125 milhões em emendas parlamentares para digitalizar documentos históricos. A consulta aos originais será liberada apenas em 2026, após a conclusão da restauração.

Os registros datam de 1815 aos anos 1850. Mesmo antes da proibição do tráfico em 1850, com a vigência da Lei Eusébio de Queirós, navios eram detidos com base em tratados internacionais. O Tratado Anglo-Brasileiro, ratificado em 1827, estabeleceu os tribunais mistos e fixou prazo de três anos para a interrupção do comércio transatlântico. A partir de 1830, o Reino Unido passou a tratar a atividade como pirataria.

Segundo o historiador Flávio Gomes, “foram criados dois tribunais. Um no Rio de Janeiro, que não era atuante por suspeitas de corrupção, e outro em Serra Leoa, que concentrou a maior parte das apreensões e confiscos”. Documentos indicam que o desembarque de cativos também ocorria no porto de Macaé, além do Cais do Valongo.

Navios eram apreendidos mesmo sem escravizados a bordo, quando havia sinais de preparação para o transporte. O professor Leonardo Marques afirma que “o Império Britânico aboliu a escravatura em 1807 e transformou isso em política internacional no momento em que tinha a hegemonia política e econômica. Os ingleses amarraram o reconhecimento da Independência do Brasil ao fim desse mercado”.

O caso do Duquesa de Bragança aparece em processo com mais de 400 páginas. A embarcação transportava 277 pessoas compradas em Angola em 1834. No momento da abordagem, 46 estavam doentes e havia sinais de falta de água e comida. O comandante responsável registrou: “a dita embarcação não estava suficientemente abastecida de água e mantimentos para o sustento dos referidos negros”. Em documento de 1836, o capitão recebeu cartas de alforria destinadas aos cativos, mas sua defesa não foi aceita pelo tribunal.

Outro processo trata da apreensão do Panquete de Bangela em 24 de agosto de 1840. O comandante do navio britânico Wizard relatou que a embarcação saiu de Angola sem identificação nacional e levava 219 escravizados, 18 deles doentes. Parte dos africanos tinha letras tatuadas, o que, segundo especialistas, indicava referência a compradores. Há registros de uso de tatuagens como punição no Brasil, inclusive a marcação com a letra “F” em fugitivos recapturados no século XVIII.

O navio Sociedade Feliz operava entre a Bahia e a costa africana. Em 1839, tentou seguir por uma rota alternativa via Cabo Palmas, mas foi detido pelo navio Warliquim e julgado em Serra Leoa. Anos depois, herdeiros ainda buscavam recuperar a embarcação. O acervo também contém documentos sobre o navio Feliz, que teria transportado mais de 200 cativos em 1834.

Outro processo trata do Africano Oriental, que deixou Lisboa rumo a Moçambique em 1830 e foi apreendido próximo ao Rio de Janeiro. A embarcação saiu com 376 pessoas; 116 morreram durante a travessia. Um anexo lista nomes e locais de compra. Parte da tripulação era formada por ex-escravizados libertos, retidos junto com os demais marinheiros. Em navios como esse, eles atuavam como cozinheiros.