Para a grande maioria das pessoas, a palavra trasgo só lembra Harry Potter (Traaaaaasgo nas masmorras!). A palavra foi usada para traduzir ‘troll’ da versão original em inglês, o que inclusive irritou alguns fãs puristas. Mas sem motivo: trasgo é uma figura mitológica portuguesa, algo entre um duende e um ogro, que faz todas as coisas que um troll faz, inclusive charadas debaixo de uma ponte. Nada como uma criatura folclórica lusitana para dar nome a um projeto como este: uma revista literária composta por contos de ficção-científica e fantasia, principalmente de novos autores e autores não publicados.
A revista é curada, digital e trimestral, lançada em PDF, MOBI e EPUB. O projeto foi idealizado por Rodrigo van Kampen e executada por ele e os amigos Enrico Tuosto e Lucas Ferraz. “A ideia da Trasgo teve várias origens. Acredito que a primeira dela tenha sido durante a faculdade de jornalismo, quando pensei em organizar uma revista de Ficção Científica como trabalho de conclusão de curso, ideia abandonada pouco depois. Há um rascunho de Trasgo em um projeto colaborativo de uma revista de narrativas transmídia, que teve pouco alcance, embora tenha dado origem a um conteúdo bem bacana”.
Outro ponto de inspiração de Rodrigo foram as revistas de contos americanas: por lá e na Europa, revistas literárias são lugar comum há décadas. São elas que revelaram vários autores como Neil Gaiman e Andrezj Sapkowski. “No começo de 2013 comecei a ter mais contato com revistas de contos americanas, principalmente a LightSpeed Magazine. Eu queria mostrá-la aos meus amigos, mas poucos lêem em inglês, e não encontrava nada parecido em português. Foi quando eu decidi finalmente arregaçar as mangas e começar a trabalhar na Trasgo, cuja primeira edição foi lançada em dezembro desse mesmo ano”, conta.

Capa da primeira edição
É importante levar em conta também que, no Brasil, ainda há um estigma muito forte contra estes gêneros literários: “A fantasia já teve a sua reviravolta com Harry Potter, que a colocou no radar das grandes editoras e da cultura pop em geral. Não sei se acredito em um caminho para ‘contornar’ esse estigma além do básico: cada vez mais obras, sempre mostrando a qualidade e profundidade da FC. Existe preconceito, até de autores, que acreditam que a FC é um gênero que não sabe lidar com sentimentos, com temas mais profundos ou complexos, quando a verdade é bem o contrário. Falta leitura em geral”, reflete Kampen.
Atualmente, a revista já está em sua décima edição. Kampen conta que o meio digital facilitou bastante a realização do projeto: “O custo de impressão é bem alto, e a logística é mais complicada ainda. Uma revista virtual não tem esses problemas. Tem outros, como confiabilidade, e a dificuldade em conquistar leitores desacostumados ao formato digital, mas não fosse assim, ela seria totalmente inviável”. Porém, com a revistá já consolidada, ele não abre mão de edições impressas: “Estamos montando um experiência de montar a revista impressa, uma coletânea anual. Precisamos lançar e medir o retorno para saber se é possível”.
Muito se fala que o número de leitores, especialmente de fantasia, está crescendo no Brasil. Porém, o mercado editorial continua tão brutal como sempre e o espaço para novos autores brasileiros parece cada vez mais estreito. Por isso, Kampen acredita que o público estava carente de uma revista como a Trasgo: “A reação foi ótima! Acho que o público estava sentindo muita falta de algo assim no Brasil, pois não existia nada parecido e ativo por aqui. Havia algumas iniciativas esparças, revistas que já tinham fechado e muitos sites que publicavam contos, mas sem curadoria ou revisão, o que dificultava para quem estava buscando algo mais filtrado. Conseguimos apoio de autores significativos da FC e Fantasia nacional, além de destaque em muitos blogs literários”.
Mesmo com o sucesso, Kampen revela que a revista, embora se banque, ainda não lucra. Como fontes de renda, ela depende de doações através do site Padrim e acabou de lançar uma loja: “A Trasgo nunca teve custos altos, por isso posso dizer que ela ‘se mantém’. Mas, ao mesmo tempo, eu não consigo tirar um salário mínimo e a parcela separada para os revisores está aquém da média de mercado. Ou seja, nós conseguimos tocar a revista, mas se esse fosse exclusivamente um negócio, não estaríamos em pé. Hoje praticamente toda receita vem das doações de nossos padrinhos e madrinhas pelo Padrim. Acabamos de lançar em parceria com a loja EPIC Art, do Grupo EPIC, uma loja com camisetas e canecas com as capas da Trasgo. Ainda não sabemos se a loja será uma boa fonte de renda, estamos na torcida”. Eles chegaram a testar alguns modelos diferentes: o primeiro ano foi totalmente gratuito, o segundo foi pago e não deu muito certo, até finalmente chegarem ao modelo atual.

Kampen (esq.) e o revisor e editor Enrico Tuosto
Kampen acredita que a qualidade e a curadoria exigente mantêm a revista popular: “A revista já foi lançada com a intenção de se profissionalizar cada vez mais. O que mudou é a credibilidade da revista. Não é tão difícil lançar uma revista, mas mantê-la por 10 edições, sim. Se não fosse todo esse histórico, dificilmente teríamos o apoio que temos dos nossos padrinhos, que confiam no trabalho. Como vamos conquistando público, vamos também tendo mais recursos para anunciar e crescer. A qualidade sobe, porque temos cada vez mais submissões de autores cada vez melhores”.
Recebendo cerca de 100 a 200 textos para serem avaliados por edição, Kampen apresenta a voracidade do público não apenas com vontade de ler, mas de ser lido. Ele percebe que entre os dois gêneros a maior parte dos textos enviados são de fantasia. Kampen acredita que é um reflexo do mercado: “Acredito que seja um reflexo da publicação no Brasil, onde a fantasia ganhou mais espaço nas grandes editoras, a ficção científica ficou relegada às editoras menores, por isso têm mais dificuldade em ganhar um público maior”. Ele contou que a revista está priorizando seu espaço para autores de minorias: mulheres, negros, pessoas LGBT e assim por diante, com o intento de ser mais diversa: “recebemos muito mais material de homens do que mulheres. Cerca de 80%. Como queremos ser uma revista equilibrada e diversificada, isso também é um desafio para a gente”.
Embora Rodrigo não apresente isto com orgulho, uma das conquistas da Trasgo é que ela já serve de vitrine para autores e editoras: “Muitos dos autores publicados pela Trasgo já têm publicações com editoras. Já outros nós ‘descobrimos’, fomos a primeira publicação profissional. O mercado de literatura é um pouco lento, mas há autores publicados pela Trasgo que sei que estão negociando obras com editoras”. Porém, ele conta que embora tenha havido contato, nenhuma editora fez até agora uma proposta interessante à revista: “não eram bacanas para os autores. Prezamos muito para que os autores recebam uma parcela generosa por seu trabalho, e só recentemente, a partir da edição 9, que realmente pudemos pagar direito os contistas”.
E o sonho de ser escritor, dá pra viver disso no Brasil? Rodrigo é pragmático: “Viver apenas de vendas de livros é bem complicado. Mas não é impossível, conheço gente que faz isso. Uma solução intermediária é encontrar profissões ou ligadas à área literária (agentes, revisores, tradutores, editores), ou que permitam uma flexibilidade de horário que permita investir em duas carreiras paralelas, como é o meu caso, que sou redator publicitário freelancer. Ou seja, não é fácil. É bem difícil, aliás, mas é possível se você pensar nisso como uma construção a longo prazo”.
Para o futuro, o plano é focar na revista para ela se tornar cada vez melhor e mais profissional. Um sonho distante é um dia ter os recursos para transformá-la em uma editora, mas a médio e curto prazo o plano é lançar audiolivros dos contos e fazer a edição impressa anual. Para conhecer e baixar gratuitamente todas as edições, basta acessar o site.
