Vivi para contar: ‘Meu pai chora quando me olha’, diz jovem que teve o rosto cortado em ônibus
Stefani Firmo, de 23 anos, fala da dor e do medo do futuro após trauma sofrido durante viagem

Os dias e as horas que antecederam aquele 29 de novembro nem de longe me faziam suspeitar que viveria um momento de terror naquela manhã. Depois disso, sinto como se minha vida fosse uma montanha russa. Fui de um extremo ao outro das emoções por escolhas que não foram minhas. A felicidade naquele fim de semana, nos dias anteriores, hoje eu queria esquecer. Tive o meu rosto cortado da boca à orelha enquanto dormia durante uma viagem.
Antes de embarcar no ônibus na tarde de segunda-feira, depois de dias lindos no Recife, só pensava em curtir uma das melhores fases da minha vida. Estava voltando de uma prova para residente em enfermagem na cidade. Escolhi a profissão bem novinha e me encontrei na área da Saúde da Mulher. Não media esforços para atingir meu objetivo.
A manhã tinha sido especial. Estava no Recife desde sexta-feira e fui à praia com uma amiga e depois a um shopping ver o jogo do Brasil. Conheci alguns pontos turísticos, tirei fotos, fiz stories. A alegria envolvia aqueles momentos. Eu estava radiante. Ao mesmo tempo, depois de toda tensão para me preparar para uma prova que podia decidir meu futuro, não via a hora de abraçar de novo os meus pais. Logo saberia, mais do que nunca, como seria grata por tê-los ao meu lado.
Eu e minha amiga chegamos à rodoviária do Recife faltando 15 minutos para a partida do nosso ônibus com destino a Salvador, às 18h15, com previsão de chegada às 7h. Corremos para deixar nossas bagagens e nos acomodarmos em nossos lugares. Decidi sentar um pouco mais longe de minha amiga para não ficarmos de papo e conseguirmos descansar. Sempre amei viagens: ver o sol nascendo, ou se pondo, colocar meus fones no ouvido e selecionar as minhas melhores músicas. Sabe a sensação de estar estrelando um filme adolescente? Era isso. Mas seria, na verdade, um filme de terror.
Antes de pegar no sono, vi que todos, ou quase todos, os passageiros dormiam. De relance, reparei que a mulher atrás de mim era a única também acordada. Eu tinha levantado rapidamente para pegar um remédio com a minha amiga. Me acomodei, coloquei o meu cobertor e relaxei. De repente, tive a impressão de que alguém tinha mexido no meu cabelo. Falei para mim mesma, “vou pôr para o lado antes que essa mulher corte ele”. Era um pensamento aleatório, de fim de noite. Nunca pensei que alguém pudesse fazer aquilo.
Acordei por volta das 5h da manhã com uma enorme pressão no rosto, que veio com uma ardência. Logo em seguida, estava banhada de sangue. Demorei alguns segundos para entender o que acontecia e fui correndo chamar minha amiga. Minha roupa, que era branca, ficou vermelha. A princípio, achei que pudesse ter sido um acidente, que algo tivesse caído no meu rosto. Não demorou para saber que havia sido vítima de uma maldade.
Eu chorava de desespero enquanto era socorrida por alguns passageiros. Uma mulher, que destoava da reação de todos os outros, chamou minha atenção. À medida que o tempo passava, só conseguia sentir com mais força que era ela a culpada pelo corte no meu rosto, que me deixaria uma marca de 18 pontos.
Ela tem por volta de 45 anos, cabelos bem curtos, cacheados e ruivos. O que a diferenciava dos demais era uma frieza nos olhos diante daquele absurdo. Era um olhar quase cínico.
Não saía da minha cabeça que, sem qualquer motivo, ela me cortou. Minha vida podia ter se encerrado ali. Nada me tira da cabeça que a intenção da agressora poderia ser cortar meu pescoço. Um pouco abaixo de onde o golpe foi desferido fica a jugular.
Sou eternamente grata a Deus por estar viva, mas é impossível não pensar nos estragos do gesto dessa pessoa. Passados mais de 15 dias, eu vivo sob o medo. Não saio na rua sozinha e até mesmo dentro de casa preciso da companhia de alguém. Muito menos ando de ônibus.
O trauma é de todos. Sempre que meu pai me olha, chora. Ele se emociona em pensar que talvez eu não pudesse estar aqui. Minha mãe, agora, está um pouco mais tranquila. Me roubaram o prazer de viajar, uma das coisas que mais amava.
Preciso focar para voltar à rotina. Sou pobre, não tenho como ir para todos os lugares de carro. Caso passe na primeira fase da prova de residência que fiz no Recife, preciso voltar para a segunda fase. Não sei como farei isso. De ônibus não será, ao menos por enquanto. Mas e se minha realidade for ficar indo e voltando de Recife para trabalhar? Estou mais insegura do que nunca. Se tiver de voltar, penso que me sentarei na última cadeira do ônibus, para não ter ninguém atrás de mim. Nunca mais vou dormir tranquila, depois de experimentar novas aventuras de uma viagem?
Estou tendo acompanhamento psicológico. Às vezes, me pergunto se ela faria o mesmo se fosse outra pessoa ali. Por que comigo? Fico buscando respostas. As pessoas acham que sou forte. Mas a minha força é a indignação. A suspeita carregava uma faca de churrasco, um alicate e uma tesoura. Mesmo assim, foi liberada pela polícia.
Tive medo da impunidade. Fui para as redes sociais apelar para a empresa de ônibus me entregar as imagens das câmeras internas. Eu me expus para obter provas de que não estava ficando doida. Nas imagens, é possível ver que uma mulher se levanta e faz um movimento rápido atrás de mim.
Aí eu penso: como é possível essa mulher estar solta? Não me conformo. Não sei quem ela é, mas já vi do que é capaz. Vou até o fim por justiça. Ela precisa parar, não pode fazer mais vítimas. Eu não sei qual seria minha reação, mas queria encontrar com ela e questionar: “por que comigo? Por que me escolheu?”
A ficha vai caindo aos poucos em meio a um turbilhão de preocupações. Passo os dias focada em saber sobre as investigações, cansada de esperar e receber justificativas. Meu receio é que ela não seja punida e continue solta. Alguns passageiros pegaram o meu contato e me enviaram fotos da mesma mulher rodando pela rodoviária, dias após o que aconteceu. É injusto que eu esteja vivendo dessa forma e ela esteja livre e tranquila.
“Meu sorriso mudou”
Eu sempre fui uma mulher vaidosa. Gosto de me arrumar, de fazer uma maquiagem simples e de me olhar no espelho. Curto fotos. Sei que eu nasci de novo porque, felizmente, não aconteceu o pior. Mas o que experimentei vou carregar para sempre. O meu sorriso não é mais o mesmo. Por causa do ferimento, que é muito extenso, sinto minha bochecha repuxando. Meu sorriso mudou. Isso dói em muitos sentidos. Tento ressignificar o que aconteceu, mas toda vez que eu olhar a minha imagem vou ver a sombra dessa mulher caminhando comigo.
Na minha cidade, em Itabuna, as pessoas passaram a me identificar como “a menina que teve o rosto cortado”. A cicatriz não toma só os meus dias com cuidados médicos e tratamentos para amenizar suas marcas. Mesmo disfarçando bem, com filtro solar, algumas pessoas me reconhecem e não escapo de ser assunto por onde eu passo. Sei que as pessoas estão preocupadas comigo. Mas o incômodo é inegável. Nunca gostei ou quis chamar atenção. Sempre fui discreta, costumo entrar nos lugares calada, sem fazer alvoroço. Eu só queria que tudo voltasse a ser como antes. Quero viver, aproveitar a minha família e continuar batalhando pelo meu futuro. O que aconteceu não vai me paralisar. Pelo contrário, tenho muito mais urgência de viver.