LEVANTAMENTO

Apenas duas a cada cinco crianças estão protegidas contra poliomielite no Brasil

Em meio ao primeiro caso de poliomielite registrado nos Estados Unidos em quase uma década,…

Em meio ao primeiro caso de poliomielite registrado nos Estados Unidos em quase uma década, e amostras do vírus voltarem a circular em águas de esgoto de outros lugares do mundo, como o Reino Unido, o alerta em relação ao retorno da pólio também chega ao Brasil. O temor do ressurgimento da doença é a principal consequência das quedas sucessivas na cobertura vacinal contra o poliovírus. E, segundo um levantamento parte do estudo VAX*SIM, da Fiocruz, que analisa a imunização dos menores de cinco anos, apenas duas a cada cinco crianças brasileiras estão protegidas até agora em 2022.

Os dados da Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite, que foi prorrogada até 30 de setembro devido à baixa adesão, mostram que até a última sexta-feira apenas 44% das crianças entre um e quatro anos receberam o reforço da vacina neste ano. Isso significa que cerca de 6,4 das 11,5 milhões de crianças elegíveis estão desprotegidas a duas semanas do fim da campanha, destacam os pesquisadores.

A doutora em saúde coletiva e coordenadora do Observa Infância – projeto da Fiocruz e do Centro Universitário Arthur de Sá Earp Neto (Unifase) responsável pelo VAX*SIM –, Patrícia Boccolini, alerta os pais sobre o risco real que o país enfrenta hoje de retorno da paralisia infantil, e a gravidade do diagnóstico para as crianças.

— A doença é muito grave, ela é incapacitante, pode trazer sequelas para as crianças para o resto da vida. Então a possibilidade da volta desse vírus, que é real, traz um impacto gigante para a sociedade. Os especialistas estão muito preocupados porque as pessoas esqueceram como essa realidade era. Seria o retorno de uma doença devastadora, principalmente para a população infantil, um retrocesso imenso. Os pais precisam proteger seus filhos, a vacina está aí, disponível nos postos de saúde — orienta Patrícia.

O poliovírus, causador da poliomielite, é considerado erradicado no Brasil desde 1994. Porém, em 2020, o relatório da Comissão Regional para a Certificação (RCC) da Erradicação da Poliomielite nas Américas (Opas/OMS) expressou preocupação com a possibilidade de reintrodução do patógeno no país e o colocou na lista de alto risco para a doença, ao lado de Bolívia, Equador, Guatemala, Haiti, Paraguai, Suriname e Venezuela.

Tendência de queda na vacinação de crianças

O esquema de imunização contra a doença no Brasil é composto de cinco doses: as três primeiras com a vacina injetável de vírus inativada aos 2, 4 e 6 meses de idade. Depois, entre os 15 e os 18 meses de idade (1 ano), é feito o primeiro reforço com a vacina de vírus atenuado, a famosa gotinha. Aos 4 anos de idade, é indicado ainda um segundo reforço, também por via oral.

O levantamento do VAX*SIM ressalta que as sucessivas quedas na cobertura vacinal levaram o Brasil a ter, em 2021, o pior percentual dos últimos 25 anos. Apenas 70% dos bebês completaram o esquema primário com as três doses, e 60% das crianças receberam o primeiro reforço. Segundo o novo levantamento dos pesquisadores, dois a cada três municípios brasileiros não atingiram a meta de vacinar 95% do público-alvo.

— Existe uma heterogeneidade muito grande entre os municípios. Temos cidades de médio porte cuja cobertura não chegou nem a 10%. Nos municípios que tendem a ter uma cobertura da atenção primária maior, a cobertura vacinal também tende a ser maior. Isso faz todo o sentido pois a vacinação acontece majoritariamente nos postos de saúde. Então estratégias para aumentar a cobertura nacional precisam ser focadas nas especificidades desses lugares, olhar o que está acontecendo ali. Porque só estender a campanha não vai ser suficiente — avalia a coordenadora do Observa Infância.

No ano passado, entre as capitais, somente Vitória, no Espírito Santo, alcançou o percentual de 95%. Além disso, 11 capitais registraram coberturas abaixo da média nacional, chegando a taxas de até 30%. Foram elas: Teresina (PI) e Natal (RN), com 74%; São Paulo (SP), com 73%; Porto Velho (RO), com 72%; Aracaju (SE), com 71%; Boa Vista (RR), com 63%; Belém (PA), com 57%; São Luís do Maranhão (MA), com 48%; Joao Pessoa (PB), com 43%; Macapá (AP), com 39%, e Salvador (BA) com somente 30%.

Segundo dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), a última vez que o Brasil alcançou a meta de cobertura contra a pólio foi em 2015. Desde 2018, nem mesmo a marca de 80% é ultrapassada. Patrícia destaca que o fenômeno da queda, estudado hoje pelo Observa Infância, não é exclusivo do imunizante da pólio, e afeta as coberturas de todas as outras vacinas infantis disponíveis hoje pelo PNI.

— Essa queda começou antes da pandemia. A Covid-19 deu uma acentuada, mas mais ou menos desde 2016 temos observado essa tendência — diz a pesquisadora.

Em relação ao sarampo, por exemplo, em 2019 o país perdeu o certificado de erradicação da doença, e desde então não consegue recuperá-lo. Isso porque somente 52% das crianças receberam a primeira dose em 2022 até agora, e apenas 43% completaram o esquema vacinal. O imunizante da tríplice viral – aplicado a partir de um ano de idade em duas doses, com intervalo de ao menos um mês entre elas – protege contra sarampo, rubéola e caxumba. Em 2021, a cobertura contra as doenças ficou em 63% – longe do ideal.

— Se isso aconteceu com o sarampo, de o vírus voltar pela baixa cobertura vacinal, o que impede que aconteça também com a pólio? Se não conseguirmos segurar o vírus com uma imunidade coletiva, vacinando ao menos 95% das crianças, o risco de ela (pólio) voltar é real. E a forma como ela assola a população infantil e deixa diversas sequelas é muito grave — alerta Patrícia.

O que causa a baixa cobertura?

Para a pesquisadora, embora o crescimento do movimento antivacina no Brasil com a disseminação de fake news sobre os imunizantes seja alarmante, há outros pontos importantes que têm corroborado de forma mais significativa para a menor adesão às vacinas.

— Como os pais não veem crianças com pólio, isso não fica no imaginário deles, o que leva a uma percepção de risco da doença menor e leva muitos a não vacinarem os filhos. Existe a questão também da perda de oportunidade, a mãe e o pai que chega no posto e ele já está fechado pelo horário e acaba não voltando outro dia. Para alguns imunizantes, como o da BCG, são aplicados apenas em dias específicos na semana, o que é ainda pior — explica a especialista.

Patrícia acredita também que problemas em outras áreas que afetam o cotidiano dos brasileiros podem também influenciar para a falta de priorização das vacinas. Ela cita, por exemplo, o aumento da fome no país. Segundo um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), de junho, cerca de 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente no Brasil. Um outro levantamento da mesma rede, divulgado na semana passada, mostrou que três em cada dez famílias sofrem insegurança alimentar moderada ou grave.

— A preocupação das pessoas com o que elas vão comer é muito mais imediata e urgente do que a vacinação. E muitas vezes essas famílias precisam ter um dinheiro extra para conseguir imunizar os filhos, por causa de uma passagem para chegar no posto que é longe, por exemplo. Então o aumento da desinformação na internet vem aumentando e é de fato um problema, mas acredito não ser tão perto da nossa realidade ainda como esses outros fatores — avalia a pesquisadora.

Ela cita ainda a falta de campanha do Ministério da Saúde para atrair os pais para as unidades de saúde. Para ela, é preciso um esforço que dure o ano inteiro, e não apenas pontualmente nas épocas da multivacinação. Com o imunizante da Covid-19, por exemplo, Patrícia pontua que praticamente não há iniciativas de comunicação, o que se reflete na baixa cobertura contra a doença nas faixas etárias mais novas.