João de Deus

Casa Dom Inácio de Loyola: atmosfera de paz e terror

Uma placa de “estacionamento lotado”, mas com no máximo quatro carros ao redor. Em frente,…

Uma placa de “estacionamento lotado”, mas com no máximo quatro carros ao redor. Em frente, outro amplo espaço para veículos, completamente vago. Pontos para táxis, onde não é possível ver nenhum taxista ou automóvel. O vazio é a primeira característica perceptível a quem chega na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia. Espécie de santuário, que antes servia de alento para milhares de pessoas em busca de milagres espirituais, o local foi revelado como palco de casos de abusos sexuais, por alguns dos quais o médium João de Deus agora cumpre 19 anos e quatro meses de prisão.

 

Antes das denúncias feitas em rede nacional contra o líder religioso, o cenário constatado pelo Mais Goiás na última quinta-feira (19) era inimaginável. Atualmente, poucos turistas ainda são vistos na Casa. Normalmente são estrangeiros, especialmente franceses que, segundo funcionários, são os que mais aparecem por lá.

A Casa é como um estabelecimento que sobrevive mesmo em meio à crise, sem a figura que protagonizou a fundação e operação desde 1976: ‘Seu João’, como é chamado o médium pelos poucos funcionários que ainda atuam no espaço. Segundo uma delas, o movimento sempre registrou queda aos finais de ano. “Final de ano sempre foi fraco de movimento, mesmo quando ‘seu João’ tava aqui. Mas muita gente vem aqui, sim. Afinal o ‘seu João’ era só um intermediário, mas as entidades continuam por aqui”. Os funcionários falam pouco. Parecem ter sido orientados a dizer apenas o necessário e um assunto aparentemente proibido é a prisão do médium.

Casa Dom Inácio de Loylola, em Abadiânia, tem milhares de fotos de João de Deus pelas paredes (Foto: André Coelho/Folhapress)

A Casa é grande, com placas que pedem silêncio por todos os lados. Contudo, o número de avisos não se compara à quantidade de fotos de João de Deus espalhadas pelos pátios. A tranquilidade manifesta pelo silêncio e por pessoas circulando de branco – que mais parecem anjos – contrasta com as denúncias de abusos sexuais. Cerca de 330 mulheres revelaram ao Ministério Público terem sido vítimas de abusos sexuais do líder espiritual durante atendimentos neste lugar supostamente sagrado. Várias passavam por momentos de fragilidade emocional e física devido a doenças ou problemas pessoais.

Registros fotográficos nas paredes relembram os tempos áureos, em que pessoas comuns e famosos apareciam recebendo atendimento. Vários diziam terem sido contemplados por milagres. Dos bancos de descanso, é possível ver as fotografias, assim como é possível perceber imagens de Jesus e fotos de João ‘incorporado por espíritos’.

Casa de Dom Inácio, de João de Deus, onde 14 mulheres denunciaram ter sido sexualmente tem atmosfera de paz e terror (Foto: André Coelho/Folhapress)

Dos bancos de madeira em meio a árvores e plantas é possível enxergar, também, picos e montanhas ao longe, no horizonte. A paisagem, inclusive, se assemelha à que pode ser vista do Pico dos Pireneus, em Pirenópolis. Inesquecível, também, é a vista do céu, que no dia da visita de nossa reportagem, em dezembro, estava especialmente azul.

Assim, à primeira vista, defeitos não saltam aos olhos. Porém, frutos secos e apodrecidos que se espalham por uma parte do complexo, dão vazão a metáforas de sofrimento. Nesse ambiente, uma parreira chama atenção com uvas impróprias ao consumo. Elas também remetem à sensação de vazio: o teto que antes abrigava o já considerado bom e milagroso ‘John of God’, guarda episódios podres vividos por 330 mulheres que declaram terem tido suas vitalidades corrompidas pelo religioso.

Espíritos

Numa loja de cristais, pedras e outras lembrancinhas, que existe dentro da casa, há um quadro com imagens dos espíritos que eram incorporados por João Teixeira. São cerca de 30. Dentre eles, estão Rei Salomão, o médico alemão Dr. Fritz, Dr. José Valdivino e Dom Inácio de Loyola, que dá nome à casa.  “Mas o Dom Inácio não vinha aparecendo muito pois ele atingiu um nível de evolução muito alto. Então ele vinha poucas vezes ao ano. Quando ‘Seu João’ incorporava, o nariz dele até sangrava pelo tanto que a entidade é forte”, conta um funcionário.

A maioria dos espíritos recebidos por João de Deus são figuras masculinas. Dentre as fotos das entidades, a única mulher é Santa Terezinha. “Ele tinha uma cabeça um pouco fechada e dizia que não gostava de incorporar mulher não”, explica o homem. “Santa Terezinha mesmo, foram poucas vezes”, acrescenta. Uma história relembrada por ele, ainda, devido a uma fotografia que está na parede da loja. Nesse momento, ‘Seu João’ estaria incorporado por um espírito masculino. E outro médium colocou um espelho na frente de ele. “O que apareceu no reflexo?”, perguntei, curiosa. “O rosto da entidade”, afirma o trabalhador.

Livraria da Casa de Dom Inácio, onde funciona o centro espírita mantido pelo médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus Foto: André Coelho/Folhapress)

Funcionamento

O local ainda conta e 30 médiuns que fazem as chamadas sessões de passe. E acompanham as pessoas que vão fazer orações na casa. “Antes eram trezentos”, afirma outro funcionário.

Os atendimentos espirituais são realizados em dias específicos: quartas, quintas e sextas. Até as 17 horas. “Mas no final de ano assim, a gente fica até 16h porque tem pouco movimento”, explica uma servidora.

O homem diz que pessoas relatam “sentir uma paz que nunca sentiram antes” só ao chegar na Casa Dom Inácio. Inclusive, entrar no local é algo bem simples. Qualquer pessoa pode ir. Mesmo não estando de branco, é possível entrar e caminhar. Para conhecer a Casa, não é preciso estar acompanhado de nenhum funcionário. É possível fazer isso sozinho. Contudo, é proibido gravar qualquer tipo de imagem.

Antes com 300 médiuns, a Casa Dom Inácio de Loyola, de João de Deus, hoje conta com apenas 30 (Foto: Revista Isto É)

*A nossa equipe, que não se identificou como jornalistas, teve o acompanhamento de alguns funcionários, que nos narraram os episódios e histórias que contamos aqui ao acreditarem que éramos apenas turistas. Os nomes de todos serão preservados.