MERCADO DE TRABALHO

Goiás bate recorde de novas empresas em meio a debate sobre ‘pejotização’

Líderes do comércio e da indústria goiana veem o fenômeno como reflexo da modernização da economia, mas especialista em direito trabalhista aponta precarização nas relações de trabalho

Com Diogo Luz

Goiás bateu recordes de abertura de empresas em 2025. Segundo a Junta Comercial do Estado de Goiás (Juceg), o Estado superou a marca de 38.306 empresas (excluindo MEIs) registradas em todo o ano de 2024 e atingiu 38.368 novos registros até outubro. O número de Microempreendedores Individuais (MEI) também disparou: de 105.744 em 2024 para 123.278 em dez meses de 2025. O resultado acontece enquanto o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) investiga indícios de fraude na migração de 5,5 milhões de trabalhadores do regime celetista para Pessoa Jurídica (PJ) no Brasil e levanta o debate sobre “pejotização”.

Para líderes do comércio e da indústria goiana, o fenômeno tem menos relação com “pejotização” e mais com um reflexo da modernização da economia, do alto custo da contratação formal e de uma busca irreversível do trabalhador por autonomia. A opinião, contudo, não é compartilhada por segmentos que atuam na defesa do trabalhador. Vale destacar que os dados de outubro revelam as atividades que impulsionam o crescimento do MEI. São elas: “Promoção de Vendas” (676 novas empresas) e “Serviços de Malote Não Realizados Pelo Correio Nacional” (659).

Presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Goiás (Fecomércio-GO), Marcelo Baiocchi Carneiro vê duas causas principais para essa expansão: o custo para o empregador e a escolha do trabalhador. “O aumento do número de MEIs, de uma forma geral no Brasil inteiro, inclusive em Goiás, ocorre em razão do alto custo que é manter um empregado celetista”, afirma. Ainda segundo ele, muitas empresas têm optado por contratar serviços terceirizados de PJs, entre eles MEIs, para reduzir custos.

Já o segundo fator é a digitalização da economia. O presidente da Fecomércio cita que o crescimento dos “serviços de malote e entregas” está “diretamente ligado ao boom do e-commerce”. Ele afirma que os entregadores de grandes plataformas, como Shopee e Mercado Livre, são, em sua maioria, MEIs. Para ele, todavia, trata-se de uma escolha consciente do trabalhador e a profissionalização via MEI, que vê como “um caminho sem volta”.

“Muitos prestadores de serviço que durante a pandemia, principalmente, começaram a prestar serviço e não voltaram para o emprego formal, como pintor de residência, azulejista, eletricista, encanador… Eles optaram em se manter nessas atividades”, explica. Ele observa a mesma lógica para motoristas de Uber e entregadores de iFood, que “optaram em não voltar para a atividade formal, preferindo continuar como empreendedor individual com autonomia”.

Ele entende que a legislação brasileira é flexível como a dos Estados Unidos, onde é possível a contratação por hora. Assim, quem busca essa liberdade migra para o MEI. Ele classifica, inclusive, como vantagem o que chama de “flexibilidade total”. Segundo o presidente da Fecomércio, desta forma, o trabalhador “faz o horário de trabalho, decide quantas horas por dia quer trabalhar, decide quantos dias por semana ele quer trabalhar e faz o salário dele”.

“Modernização da economia”

Pensamento semelhante é compartilhado pelo presidente interino da Associação Comercial, Industrial e de Serviços do Estado de Goiás (Acieg), Leandro Resende. Ele vê o fenômeno como um reflexo da “modernização da economia” e diferencia o cenário atual da “pejotização” pejorativa. Ele argumenta que mercado não demite para recontratar como PJ, mas cria novas vagas em um cenário de baixo desemprego.

Sobre a principal atividade de MEIs em Goiás, a de “promoção de vendas”, Resende analisa que a categoria se tornou um “guarda-chuva” para novas profissões digitais. Ele cita influenciadores e gestores de marketplaces, que não possuem uma categoria específica e se formalizam por ali.

(Foto: Agência Brasil)

Direitos

Por outro lado, o advogado trabalhista Renato Ribeiro Ferreira disse que a “pejotização” não representa modernização, mas a precarização das relações de trabalho. “O discurso da modernização serve muitas vezes para mascarar uma estratégia de redução de custos empresariais que acaba suprimindo direitos básicos do trabalhador. Na prática, o que ocorre é a substituição do vínculo de emprego, com todas as garantias previstas na CLT, por contratos de prestação de serviços que transferem todo o risco e os encargos ao trabalhador, que deixa de ter férias, 13º, FGTS e proteção previdenciária”, detalha.

Para ele, o avanço no registro de microempreendedores individuais tem relação direta com a crise econômica e o alto custo de contratação formal, mas também com a falta de fiscalização. Ele argumenta que “muitas empresas encontraram no modelo de MEI e PJ uma forma de diminuir encargos e obrigações trabalhistas, empurrando o trabalhador para a informalidade disfarçada de empreendedorismo”. Ele ressalta que, em Goiás, esse fenômeno é evidente em setores como entregas, vendas e prestação de serviços, “onde a pejotização é usada como condição para manter o emprego”.

Pesquisa Datafolha de junho deste ano revelou que 59% dos brasileiros declara preferência pelo trabalho por conta própria, contra 39%, que disseram preferir ser contratados por uma empresa. Renato vê uma “ilusão de autonomia” nesses números.

“Muitos acreditam que ser PJ ou MEI significa ser dono do próprio trabalho, quando na verdade continuam submetidos às mesmas ordens, horários e metas de antes, só que sem as proteções legais.
A falsa sensação de liberdade acaba escondendo uma realidade de insegurança, ausência de benefícios e vulnerabilidade social”, lamenta.

Conforme o especialista, a reforma trabalhista de 2017 flexibilizou muitas garantias e abriu brechas para práticas que enfraquecem o trabalhador. Ele afirma, contudo, que a legislação ainda tem bons aspectos, como o artigo 9º da CLT, que considera nulos os atos que buscam fraudar a relação de emprego. Entretanto, ele observa que falta fiscalização para acompanhar o ritmo das transformações.

“O resultado é que o trabalhador se tornou, de fato, o elo mais fraco nessa relação, muitas vezes sem perceber a extensão da perda de direitos”, disse e emendou: “O Brasil precisa discutir a modernização das relações de trabalho, sim, mas sem destruir as bases de proteção social que garantem dignidade ao trabalhador. A verdadeira modernização virá quando conseguirmos aliar tecnologia, inovação e eficiência à preservação dos direitos fundamentais, e não quando transformamos o trabalhador em pessoa jurídica apenas para reduzir custos.”