SÉRIE ESPECIAL | NA MIRA DO DESPEJO

Ocupantes do Alto da Boa Vista garantem: “Vivemos com dignidade”

Uma comunidade com cerca de 350 famílias: 150 crianças e um total de quase mil…

Uma comunidade com cerca de 350 famílias: 150 crianças e um total de quase mil pessoas. Vizinhos e amigos se ajudam como podem. Se um bebê fica doente e a mãe solteira não pode faltar ao trabalho, uma vizinha se dispõe a levá-la ao médico; se alguma família precisa de fraldas e não consegue comprar, recebe doações; para buscar vagas em CMEIs e escolas para as crianças, há uma mobilização para que todas possam estudar. Todos descrevem o ambiente seguro, crianças são vistas brincando pelas ruas.

As condições financeiras dos moradores não são melhores porque muitos estão desempregados, mas com a ajuda dos amigos, conseguem se manter. Se as ruas são de terra e as paredes das casas de madeirite, a compensação vem com com água limpa – retirada de poços artesianos – e a energia elétrica, para as noites escuras e para se informar pela televisão.

Morar sob um teto, mesmo que em uma residência de poucos cômodos, protegida das chuvas de verão, faz com que os corações das mães e das futuras mamães fiquem apaziguados. Nenhum luxo. Nenhuma regalia. Muitas dificuldades. Mas uma certeza prevalece entre todos os moradores do Alto da Boa Vista, em Aparecida de Goiânia: eles vivem com dignidade.

Contudo, a opinião da juíza da Vara de Fazenda Pública Municipal, Vanessa Estrela, é diferente da deles. Ela afirma que “não ignora que nas áreas da contenda se encontram cerca de centenas de famílias, as quais, é bem provável que a grande maioria, não possui moradia própria, estando entre eles idosos, crianças, gestantes, e toda sorte de pessoas vulneráveis. Ocorre que a área onde se encontram também não lhes oferece qualquer condição digna de habitação e a provável violência social a que estariam submetidos antes de irem para lá, como frisou a nobre defensora pública, certamente continuará existindo naquele local”, argumentou ao assinar a ordem de expulsão. 

Esperança

As primeiras famílias chegaram ao local em 2018, depois de serem retiradas da ocupação em Serra das Areias, no mesmo município. A decisão por participar de uma nova ocupação não foi fácil para a maioria delas. Na verdade, é apenas uma consequência da falta de opções para quem não tem condições para pagar aluguel nas situações de desemprego ou subemprego em que vivem. É esse o caso de dona Nilza Botelho, que se mudou, há quatro meses, para fugir do marido que a agredia física, verbal e emocionalmente.

“Tenho medo de perder”, diz ela sobre a decisão da magistrada pelo despejo dos ocupantes do Alto da Boa Vista. “A minha esperança está aqui. E eu creio que a de muitos também. Se perder, nem sei o que vai ser. E voltar para o meu marido não quero. Não quero viver debaixo do pesadelo toda vida.”

Nilza, que é catadora de materiais recicláveis, revela ao Mais Goiás que já não conseguia mais pagar aluguel. Sem outra opção, ela saiu seu antigo lar devendo duas prestações, além de um talão de energia de R$ 54. “Quem estava me ajudando era o ex-marido, mas já tínhamos separado. Ele estava me perturbando demais, então a única solução foi vir pra cá. Já apanhei muito na mão dele. Então, fugi.”

Apesar de separados, o marido de Nilza se “comprometia” em ajudar com o aluguel “desde que se ela sujeitasse a tudo que ele queria”. Mas para a mulher essa situação de violências e humilhações se tornou insuportável. “Então resolvi vir pra cá.” 

Nilza é mãe de cinco filhos. Na comunidade, duas meninas a acompanharam: uma de 12 e outra de cinco anos. “Viemos nós três à procura de uma melhora. Meu sonho é dar uma vida melhor para elas. Mas só com trabalho de reciclagem é difícil. Uns dias a gente acha mais, outros menos, então eu sei que pra gente manter alimentação, aluguel, energia, com trabalho de reciclagem, não dá. Pra mim, comprar um lote a prestação também não dá. Toda a minha família é fraca de condição”, justifica. 

A mãe de dona Nilza foi quem conseguiu ajudá-la a se mudar. Segundo a recicladora, uma mulher saiu da ocupação e ela e as filhas entraram no lugar. “Minha mãe já ‘peleja’ com um irmão fraco da cabeça (sic), que sofre esquizofrenia. Então, não tem como [ajudar].”

Nilza é mãe de cinco filhos. Na comunidade, duas meninas a acompanharam: uma de 12 e outra de cinco anos (Foto: Bárbara Zaiden)

Dignidade

Fiama Alves de Souza está desempregada, mas “faz os cabelos” da moradoras da ocupação para complementar a renda. Mãe de uma menina de cinco anos e outro de um ano e sete meses, ela está grávida de quatro meses.

A decisão da juíza, de meados do ano passado, foi confirmada em janeiro deste ano, após uma audiência com os envolvidos. “Com a decisão da juíza, de despejo, o coração fica doído. Fui na audiência de conciliação e saí de lá arrasada. O que escutamos lá nem um cachorro merecia escutar. Nós somos seres humanos”, disse com os olhos marejados, Fiama, que vive no assentamento com os filhos e o companheiro.

“Ela falou que aqui nem tínhamos título de eleitor. Eu voto desde meus 16 anos. Hoje estou com 28. Isso pra mim é uma afronta, pois contribuímos todos os anos. Todas as pessoas contribuem com imposto, com tudo”, continuou.

De acordo com Fiama, a magistrada quer que os moradores deixem o local e vão para casa de parentes. No caso dela, a irmã e mãe também moram ali, em barracos do seu lado. “‘De onde vocês vieram, vocês podem voltar’. Ela disse isso”, replicou. “No dia de chuva, nós temos um teto. Meu barraquinho não molha. Melhor que ir pra rua com meus filhos. Eu vivo com dignidade”, garante.