Ser pai, ser herói: enfermeiro do CBMGO fala sobre criar as filhas sendo um homem LGBT+
Em entrevista ao Mais Goiás, Kerginaldo Júnior conta como é conciliar a rotina de salvamento com a criação das filhas ao lado do marido

No Brasil, o caminho para o reconhecimento pleno de famílias diversas ainda enfrenta barreiras sociais, culturais e institucionais. Mas histórias como a do enfermeiro Kerginaldo Júnior mostram que também há espaço para afeto, superação e conquistas. Ele é pai de duas filhas adultas, atua há 19 anos no SIATE – Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência – e integra o serviço aeromédico do Corpo de Bombeiros Militar de Goiás (CBMGO).
Kerginaldo é pai biológico de Eduarda, de 21 anos, e Samira, de 18. Ambas estudam na Universidade Federal de Goiás: uma cursa Educação Física, a outra Jornalismo. “Eu sempre quis ser pai. Desde a infância, já sentia esse desejo. No começo, era muito ligado ao medo de ficar sozinho. Pensava que, se tivesse filhos, nunca estaria só no mundo”, lembra. Neste Dia dos Pais, a trajetória dele ganha ainda mais simbolismo, reforçando que paternidade também é feita de presença, cuidado e construção diária de laços.
Família presente, unida e amorosa
Ele criou as filhas desde a primeira infância, com apoio da família e da mãe, que sempre morou com eles. “Nós quatro sempre formamos um núcleo familiar extremamente unido e companheiro. Eu, as meninas e minha mãe. A gente sempre esteve junto, nas tarefas do dia a dia, em jantares, almoços, exercícios. Sempre fiz questão de ser um pai presente e leal.”
Ao longo da jornada, a maior preocupação de Kerginaldo não foi a aceitação das filhas, mas o impacto que a orientação sexual dele poderia causar na vida delas. “Meu maior receio era como o mundo enxergaria minha paternidade e como isso chegaria até elas. Queria que fossem vistas apenas como filhas de um pai, não de um pai gay.”
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Preconceito disfarçado de doutrina
Esse receio se concretizou durante a infância das filhas, em escolas com base religiosa. Em uma instituição católica, uma delas ouviu de um professor que “os pecadores devem ser amados, como os assassinos, estupradores, homossexuais e ladrões”. A fala a marcou profundamente.
Kerginaldo procurou a escola, mas recebeu como resposta que o professor estava “em consonância com a doutrina cristã”. O mesmo aconteceu em instituições protestantes: sempre que levava algum questionamento, a escola se posicionava ao lado do corpo docente. “Quando elas cresceram, transferimos para uma escola sem vínculo religioso. A convivência mudou completamente. Os colegas passaram a nos acolher. Meu marido era querido por todos, e as meninas se tornaram até admiradas por terem uma família diferente.”
“O Higor é o namorado dele”
Outro momento marcante aconteceu durante um jantar. Uma mãe perguntou, na frente de todos, quem era Higor – companheiro de Kerginaldo. A resposta veio direta da filha: “O Higor é o namorado dele.” Segundo o enfermeiro, a segurança da resposta desarmou qualquer tentativa de exposição ou julgamento. “Esperavam uma resposta evasiva, tipo ‘é um amigo’. Mas a firmeza dela encerrou o assunto ali mesmo.”
Essas experiências foram os principais momentos de preconceito enfrentados por ele. Em outros setores, como saúde e justiça, não houve barreiras significativas. “Acredito que isso também se deve ao fato de elas serem minhas filhas biológicas, com nome da mãe na certidão. Nunca houve questionamento formal. A única situação foi nos Estados Unidos, quando perguntaram se eu tinha guarda legal delas. Expliquei que eram minhas filhas biológicas e tudo se resolveu.”
Ser pai, ser bombeiro, ser referência
Kerginaldo também nunca enfrentou resistência dentro da corporação. “Muito pelo contrário. Sempre houve acolhimento genuíno. Minhas filhas eram bem recebidas. A Eduarda até participou do Bombeiro Mirim. Em muitos plantões, eu buscava elas na escola, e elas ficavam comigo no quartel. Sempre fomos respeitados.”
Para ele, o maior orgulho é ver o quanto suas filhas evoluíram e reconhecerem nele uma referência. “O momento mais marcante foi quando ambas se matricularam na Universidade Federal. Ali eu senti: ‘Pronto, venci’. Ver que contribuí para que chegassem até aqui é minha maior conquista. Me orgulho de ser exemplo para elas como pai, como profissional e como homem.”
Avanços e esperança
Sobre a evolução da sociedade em relação às famílias LGBTQIAPN+, Kerginaldo é otimista. “Hoje está mais comum ver crianças com dois pais, duas mães, um pai ou mãe solo. A sociedade está se preparando melhor para acolher essas realidades. Acredito que estamos caminhando para um futuro onde amor, cuidado e presença importam mais que a estrutura tradicional.”
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