Trauma inspira vítima de João de Deus a lançar livro
Autora visitou Abadiânia em 2010 em busca de cura para a mãe

Andrea Mannelli é uma das vítimas do médium João de Deus, condenado por múltiplas acusações de abuso sexual. De São Paulo, a mulher, que é executiva de moda e ativista, usou o trauma sofrido para produzir e lançar, nesta semana, o livro “Musculatura Emocional”, da Editora Jandaíra. A obra, disponível em plataformas digitais, visa promover transformações reais na vida de pessoas que se identificam com sua trajetória.
“Andrea Mannelli relata sua trajetória pessoal e profissional marcada por conquistas, superações e um relato marcante de enfrentamento à violência e abuso. Através de um texto firme, acolhedor e sensível, a autora compartilha como desenvolveu, ao longo de sua vida, a inteligência emocional necessária para atravessar momentos difíceis e traumáticos, como o episódio em que foi vítima do criminoso sexual João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus”, diz trecho da sinopse. “Pela combinação de memórias íntimas, reflexões sobre autoconhecimento e lições extraídas do mundo corporativo, Musculatura Emocional evidencia a importância da coragem, da resiliência e do poder do afeto para a cura individual.”
A executiva esteve em Abadiânia em 2010. À época, ela buscava cura para a mãe, diagnosticada erroneamente com câncer (ela tinha, na verdade, um tumor benigno). O abuso ocorreu em momento de fragilidade. “Depois do abuso, passei por uma confusão mental e percebi que o que tinha acontecido na sala dele era muito errado. Sentia uma angústia enorme, mas havia aquele discurso de que aquela era a única forma de curar minha mãe e que, se eu contasse, perderia o efeito. Não conseguia organizar as ideias, sentia muita sonolência e só pensava em dormir e ir embora daquele lugar”, disse à coluna Painel, da Folha.
Sobre o termo “musculatura emocional”, trata-se de uma metáfora para a capacidade de se reconstruir. Ela disse, ainda, que a ideia surgiu de um dilema. “Pensava em como resolver aquilo e, então, me lembrei da superação daquela situação [o abuso], que foi muito mais traumática. Se eu havia conseguido me reerguer uma vez, conseguiria novamente.”
Falar de forma pública sobre o caso, além, claro, da violência sofrida, foi o momento mais difícil para ela. “Precisei acessar todos os recursos emocionais de que dispunha, além dos que encontrei durante um processo terapêutico intenso, para conseguir me curar.” Em vários momentos, ela pensou que não conseguiria superar o trauma, pois “tudo era superlativo, inclusive a vulnerabilidade e a culpa. Era avassalador”.
O Mais Goiás procurou a defesa de João de Deus para comentar o livre. A informação, contudo, foi apenas que o médium “continua cumprindo pena e cumprindo todos os requisitos legais impostos a ele”. O portal também tentou contato com a assessoria de Andrea, mas não teve retorno.
Relato
Quando a família recebeu o diagnóstico que a mãe de Andrea tinha poucas chances de sobrevivência, eles ficaram desesperados. A ideia era encontrar algo além da medicina tradicional. Foi quando a irmã dela foi a uma palestra e ouviu falar do médium João de Deus.
Sem opções, Andrea decidiu buscar a cura em Abadiânia. Na Casa Dom Inácio de Loyola, no município, sentiu paz e tranquilidade. Viu uma multidão de pessoas vestidas de branco, que rezavam e desejavam bem ao próximo.
Em depoimento à repórter Ana Carolina Pinheiro, da Vogue em 2023, ela disse: “Depois do abuso que sofri lá dentro, passei por uma confusão mental e senti que o que tinha acontecido na sala dele era algo muito errado. Me dava uma angústia, mas existia aquele discurso dele de que era a única forma para obter a cura da minha mãe e que, se eu contasse, perderia o efeito. Não conseguia concatenar muito bem as ideias, me sentia muito sonolenta e pensava só em dormir e ir embora daquele lugar.”
Ela diz que voltou à cidade com a mãe já curada. Não havia mais vulnerabilidade naquele momento. Andrea acreditou na cura. “Esse sentimento durou até a minha amiga também ser abusada lá dentro naquela ocasião. Até então, vivia na ignorância. Costumo dizer que, quando você não tem consciência do que acontece com você, não há sofrimento. Sinto como se tivesse aberto os olhos pela primeira vez nesse processo, foi muito duro. Naquele momento, me veio uma revolta imensa, mas também uma dor imensa por entender o crime que tinha acontecido comigo.”
Segundo a executiva, foi preciso um processo terapêutico para entender o que o ocorreu e para se libertar. Deixou de ser vítima e se tornou sobrevivente. “A superação de um crime de estupro é muito difícil, quase inexiste na maioria dos casos, mas você aprende a viver de uma forma diferente. Quando superado, o trauma não conduz mais sua vida, não tem mais o controle das suas emoções, logo a vida se torna mais humanizada e ética.”

Condenações
João de Deus foi condenado em 15 processos que somam 458 anos, 11 meses e 5 dias de reclusão, segundo o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) por crimes praticados contra 66 vítimas. Houve, todavia, a extinção da punibilidade pela decadência ou prescrição em relação a 120 vítimas.
Há mais de três anos, ele vive preso em regime domiciliar, em Anápolis, com a advogada Lara Cristina Capatto. Ele ainda administra seus negócios, atuando no ramo espiritual. Ele é um dos responsáveis pela produção e venda de mesas de cristal. Os itens prometem cura e valem mais de R$ 15 mil na internet.