Tempo. Talvez este seja um dos maiores problemas de 3%, primeira produção brasileira original da Netflix. A série distópica chegou ao catálogo mundial do serviço de streaming no mesmo dia que Gilmore Girls, uma das estreias mais aguardadas do ano, e apenas alguns dias depois da estreia de The Crown, produçao britânica original da Netflix e de grande orçamento.
Fora isso, 3% estreia com meses de atraso em um mercado já saturado de ficções distópicas adolescentes, uma avalanche iniciada por Jogos Vorazes e seguida de perto por adaptações de The 100, Divergente e Maze Runner que rapidamente exauriram o telespectador não só do Brasil, mas pelo mundo afora.
Além destas barreiras, a série ainda tinha outras tantas dificuldades para superar: uma própria imaturidade do audiovisual local em relação ao formato e ao público, por exemplo; um elenco predominantemente iniciante ou com bagagem teatral ou de dublagem; sérias restrições orçamentárias e assim por diante.
Levando tudo isto em consideração, 3% é uma boa série? Mesmo depois de finalizar os oito episódios que compõem a primeira temporada, é difícil dizer. O programa com certeza não é ruim, mas também fica abaixo do nível de qualidade que se espera de uma série com intenções de não apenas agradar o público nacional, mas de integrar o catálogo internacional – especialmente o latino – da Netflix.
Criada por Pedro Aguilera e baseada em seu curta-metragem de mesmo nome lançado em 2011, a série se passa em um mundo pós-apocalíptico e distópico dividido entre os bem-sucedidos do Maralto, compostos por uma minoria da população, e o resto, que vive na miséria do Continente.
A única chance de passar do Continente para o Maralto vem aos 20 anos de idade quando todos os jovens participam d’O Processo, um sistema de seleção para separar o joio do trigo. E sim, a metáfora com a meritocracia e o vestibular não é nem um pouco sutil, beira o ridículo até.
A trama gira ao redor de um Processo acompanhando alguns jovens, sendo a principal deles Michele (Bianca Comparato) que quer vingar a morte do seu irmão no Processo cinco anos antes.
A parte mais chata é que Michele é, de longe, a personagem mais sem graça do grupo de protagonistas que rapidamente se forma ao longo dos episódios: Rafael é um mala desonesto que irá fazer de tudo para passar; Joana é uma garota durona que cresceu nas ruas tendo que se virar, passando a maior parte da vida se sequer ter um nome; Fernando é um jovem cadeirante que espera que a medicina moderna do Maralto possa recuperar o movimento de suas pernas; Marco é um jovem que faz parte de uma família que sempre passa no Processo que sente o fardo desse legado pesar sobre suas costas.
Não dá pra contar mais sem dar spoilers, mas fica claro bem rapidamente que TODOS os outros personagens são mais interessantes e possuem motivações melhores que Michele, então a simpatia pela personagem principal vai lá pra baixo quando você se vê torcendo por um personagem que podia muito bem fazer parte da decoração cenográfica.
As atuações também são ambivalentes. Muitos dos atores nunca atuaram em nada com uma proposta parecida ou deste tamanho e a inexperiência transparece. Muitas performances são forçadas na melhor das hipóteses e risíveis na pior delas.
Curiosamente, os melhores atores são ao mesmo tempo os melhores personagens: Vaneza Oliveira vive Joana e é de longe a verdadeira estrela de todos os episódios. Quem vem logo atrás é Michel Gomes, que vive Fernando. Logo fica claro que seus personagens são, por comparação, oceanos em um elenco de poças.
Em defesa dos atores, o próprio enredo e o roteiro não ajudam e é ele mesmo uma montanha-russa. O seriado possui João Miguel, um dos melhores atores brasileiros da atualidade, no papel de Ezequiel, o sádico chefe do Processo.
Porém, o roteiro é tão travado e o personagem tão raso que é visível que João está fazendo o melhor com o que tem e mesmo assim o resultado ainda é dolorosamente forçado.
Mesmo com este desequilíbrio todo, 3% possui seus momentos. Os dois primeiros episódios, infelizmente, são muito fracos, assim como os dois últimos não se destacam. Porém, o miolo composto pelo terceiro, quarto, quinto e sexto episódios é bom de verdade e cheio de acertos.
Nestes episódios 3% parece realmente ganhar vida e dedicar atenção e tempo aos seus personagens e seus arcos deixando-os arejar, caminhar fora de suas personas engessadas.
Outro ponto ambivalente é o próprio mundo em si. Pelo lado ruim, 3% peca pelos clichês: é cheia deles. Existe uma dicotomia óbvia e cansada entre os caras bons e os caras maus e obviamente também existe A Causa, um grupo terrorista de guerreiros da liberdade que quer acabar com a opressão do Maralto. Em muitos pontos, o mundo da série parece ter sido criado com um “Kit de Mundo Distópico Instantâneo” que faria George Orwell revirar em seu túmulo.
Esse problema faz a série ficar pobre, cinza, sem graça: qual é o ponto de se fazer uma abordagem sobre fim do mundo no Brasil se não terá NADA de novo em relação a todas as outras trezentas mil histórias com o mesmo contexto? E os sotaques também não ajudam: o Continente hipoteticamente fica na foz do rio Amazonas e é mais ou menos tudo o que sobrou da América do Sul. Portanto, é muito estranho ver que todo mundo tem sotaque paulistano ou carioca e por mais que possa parecer bobagem, isso quebra completamente a imersão no mundo da série.
E não é como se no Brasil não tivéssemos exemplos de mundos distópicos e/ou pós-apocalípticos de sucesso: há Rio 2054, Rio: Zona de Guerra e Cidade Banida, por exemplo, isto só na literatura recente.
É isso ou senão os atores não têm sotaque, bem no esquema Padrão Global, o que é um crime, especialmente no caso de João Miguel que é baiano de Salvador: é um pecado privar a série de regionalismos e de um sabor e pegada brasileiros.
Outro problema, mas este eu dou um desconto porque todos os filmes e séries distópicos o tem, é que todo o elenco é bonito e saudável demais para jovens que cresceram passando fome.
Apesar de todas estas oportunidades perdidas, 3% ganha pontos por ter um mundo interessante e com potencial, que se apresenta aos poucos com suas peculiaridades, como O Processo ser adorado como uma religião ou as crianças nascidas no Continente muitas vezes não ganharem nomes. São detalhes que ajudam a dar forma a este mundo e no envolvimento da audiência com ele.
Outro ponto positivo é a diversidade do elenco: um número razoável de personagens de destaque é negra e jovem, tirando estes atores da velha caixa que sistematicamente os coloca em papéis de empregados ou crimonosos.
Enfim, apesar de seus vários e volumosos deslizes, 3% é uma série com muito potencial e acertos o bastante para redimi-la de alguns defeitos e para encorajar os produtores a fazer algo maior e melhor. Ficamos agora na expectativa de uma segunda temporada no futuro e que estes possíveis novos episódios consigam realizar todo o seu potencial, elevando-a de apenas “OK” para uma produção plena e com seus próprios méritos.
Porque 3% merece.