Twin Peaks: série retorna com nova temporada após 25 anos
Conversamos com os fãs sobre o programa que mudou a televisão dos EUA
“Diane, são 11h30 do dia 24 de fevereiro. Estou entrando na cidade de Twin Peaks, cinco milhas ao sul da fronteira canadense, 12 milhas a oeste da fronteira estadual. Eu nunca vi tantas árvores”. Assim chegou o agente especial do FBI Dale Cooper e todo o público dos EUA e do mundo à cidadezinha aparentemente pacata do norte dos EUA para desvendar um crime sinistro: o assassinato brutal de Laura Palmer, uma adolescente querida por todos de apenas 17 anos.
Com apenas duas temporadas e um total de 30 episódios, Twin Peaks estreou em 1990 e foi cancelada em 1991, gerando ainda um filme prequela em 1992. A série, criada pelo cineasta David Lynch, então no auge após o sucesso de Veludo Azul (1986), em parceria com Mark Frost se tornaria um sucesso cult e viria a revolucionar o modo de se fazer televisão nos Estados Unidos.
O programa combinou um elenco de primeira liderado por Kyle MacLachlan como Cooper com um alto valor de produção somado à autoria de Frost e Lynch. A série se tornou um sucesso instantâneo, misturando comédia pastelão com investigação policial e terror sobrenatural. Mas então veio o cancelamento: a ABC, canal original do programa, mudou sua exibição para sábado à noite. Além disso, a Guerra do Golfo eclodiu e, por fim, a maior parte do público perdeu o interesse pelo programa após o desenrolar do seu enredo central e pelo crescimento do foco nos acontecimentos sobrenaturais da cidade.
Agora, 25 anos depois do filme Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer, o Showtime vai exibir toda uma nova temporada escrita e produzida pelos criadores originais e com o retorno da maior parte do elenco, além de um novo mistério e novos personagens. Tudo sobre os novos episódios está sob sigilo.
E é um retorno muito esperado: como a série só foi cancelada após o final da segunda temporada, todos os ganchos do último capítulo ficaram abertos. Ou seja, os fãs remoem perguntas sem respostas há 26 anos. Alguns diriam até mesmo que o retorno é premeditado: no último capítulo que foi ao ar, Laura Palmer diz “você vai me ver de novo em 25 anos”.
Fãs
Um dos motivos para o retorno do seriado é que ele passou por um novo bum de popularidade. Graças à internet e aos serviços de streaming, Twin Peaks acabou sendo assistida por toda uma geração que não a conhecia. “Minha mãe sempre me falava sobre uma série que ela assistia na adolescência, depois do Fantástico, e na chamada (que acontecia no Faustão) ele perguntava: Quem matou Laura Palmer? Ela dizia que era a melhor série que ela já assistiu”, contou o fotógrafo Kirah van der Lemon. Isso lhe voltou à memória quando viu a série no catálogo da Netflix, em 2011 (de lá pra cá, ela foi removida).

Acompanhado de sua namorada, Kirah viu todos os 30 capítulos dessa que se tornou sua série favorita. Ele inclusive possui a coleção completa em Blu-ray, importada. Ele conta que acabou sendo conquistado pelos personagens e pelo mundo criado pelo programa: “O que sempre me prendeu foi o personagem agente Cooper. Já era fã do Kyle, mas na série ele se destaca muito acima de qualquer outro. O mais incrível é o universo Twin Peaks: as roupas, a floresta, as tortas, os cafés, os personagens únicos, que só poderiam sair de uma mente genial como a de Lynch”.
De acordo com o fotógrafo, ele já convenceu muita gente à assistir (“a maioria sai fã”) e está muito empolgado com a nova temporada: “Eu espero o retorno de Twin Peaks desde quando saiu a primeira fofoca sobre isso. A minha expectativa nunca esteve tão alta. Depois do último teaser trailer eu realmente estou confiante”. Isso não impede que ele sinta medo, nem que acredite que tudo estava previsto: “Eu tenho meu medo, sim, porque acho o último trabalho do Lynch muito pirado. Até agradeço ele não ter feito mais nenhum filme depois disso (como prometido). Mas se o Lynch voltou pra produzir essa série, é porque nós realmente devíamos nos encontrar, 25 anos depois!”.
Outra jovem fã é a assistente de fotografia Naia Arinelli. Ela descobriu a série por acaso: uma amiga comprou o box e as duas assistiram juntas, aos 15 anos. “Me apaixonei de cara, nem sabia explicar o porquê… Os personagens falavam com algo em mim, mais tarde descobri que a sensação de estranhamento que a história passa é muito parecida com a sensação de estranhamento que eu mesma tenho com a vida, em situações sociais e etc”, conta.

A série e seus criadores viraram algo muito pessoal para a jovem que tem Lynch tatuado no corpo e que não costuma apresentar a série para outras pessoas: “Talvez nesse aspecto eu seja até meio boba, gosto da série inteira. Gosto do livro, até do filme que não acho lá grandes coisas, tenho certo apreço. Se tornou algo muito pessoal pra mim… David Lynch foi meu primeiro role-model. Hoje faço cinema e aspiro direção”. Sobre os novos episódios, ela tenta conter a expectativa: “Não sei, não sei o que esperar. Certa ansiedade, certo medo. Mas acho que vou gostar. Como já disse, sou tendenciosa quando se trata desse assunto”.
Já o cervejeiro Eric Rodrigues começou a ver por sugestão da própria Netflix: “Comecei a assistir assim que acabou Breaking Bad, dizendo ser por causa de Twin Peaks que séries tão boas existem (o que concordo agora, risos). Confesso que inicialmente ela me causou um estranhamento mas logo percebi que era pela diferença estética da época, o que também foi o que me interessou e acabou me prendendo”. Sobre os novos episódios e o final da segunda temporada, Rodrigues está 100% pilhado: “Empolgado é pouco, muito ansioso pra ver o que nos espera (risos). Eu gosto do final, mas deu pra perceber que tinha muito mais pra acontecer e houve uma poda ali por causa do cancelamento”.
Respaldo acadêmico
Um quarto de século depois, ainda é possível ver a influência do seriado, de forma mais ou menos sutil, sobre outros programas. As duas influências óbvias vieram logo depois: Arquivo X, que apostou no estranho e na conspiração, se tornando um fenômeno, e em LOST, seriado de Damon Lindelof e JJ Abrams que se baseou nos erros e acertos de ambas as séries para criar um fenômeno ainda maior e mais comercial focado nos arcos individuais de seus personagens enredados em uma trama maior de mistério.
“Muito embora tenha havido sobressaltos em relação à audiência da série, ela atestou que as narrativas complexas eram viáveis, tanto economicamente como formalmente, e impulsionou o seu desenvolvimento”, declarou o professor da disciplina de Narrativas Complexas da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG, Rodrigo Cássio. Para ele, o legado do seriado é inegável: “Twin Peaks foi uma experiência que inaugurou a chamada ‘terceira era de ouro’ da televisão americana, que levou ao surgimento de muitas séries que se tornaram cultuadas nas últimas décadas (de Sopranos a Mad Men, passando por Breaking Bad, The Wire etc.). Isso não significa que existe uma unidade estilística em todo esse filão das séries contemporâneas. As séries são bem diferentes em vários aspectos, mas elas convergem no sentido de serem produzidas por meio da conciliação de “arcos curtos” e “arcos longos”, isto é, narrativas mais breves e narrativas mais longas que se realizam simultaneamente, conquistando uma fidelização dos espectadores”.

Com a pergunta chave: Quem matou Laura Palmer?, Cássio acredita que o seriado conseguiu despertar os executivos para o desejo do público por este tipo de programa na televisão. Para o professor, Lynch e Frost se misturam nos roteiros, não sendo possível determinar um traço de autoria determinante, mas que com certeza é perceptível ver características marcantes no seriado: “se sobressaem em Twin Peaks o gosto de Lynch pelo surrealismo e uma construção de personagens baseada em traços de personalidade marcantes, que se sobrepõem à densidade psicológica”. Em parte, acredita o professor, a esquisitice do seriado pode ter afastado parte do grande público: “Há lances evidentes de experimentação com essa forma no âmbito televisivo, o que nos permite aproximar a série ao imaginário ‘desdramatizado’ do cinema moderno. Essa estranheza levou muita gente a não entender o que a série estava fazendo”.
Ele finaliza: “É curioso observar, hoje, que Twin Peaks tenha sido realmente algo inovador demais para o seu tempo, e tenha enfrentado problemas por conta disso”. Da mesma forma, Cássio se diz bastante intrigado pela nova temporada: “Eu acompanho com interesse a produção de novos episódios. Acho que essa é a postura correta diante de qualquer anúncio de retomada de séries clássicas, evitando o preciosismo de ‘emoldurar’ o que já foi feito como se nada mais pudesse ser acrescentado”.
O primeiro episódio da nova temporada estreia nos EUA na noite do próximo domingo (21).