OPORTUNIDADES

Máfia italiana se aproveita da pandemia e expande atividades ilícitas

Numa Itália imersa na crise provocada pelo coronavírus, talvez um único setor esteja melhor hoje…

Numa Itália imersa na crise provocada pelo coronavírus, talvez um único setor esteja melhor hoje do que quando foi decretada a quarentena, no início de março: a máfia. Desde que a pandemia se espalhou por todo o planeta, autoridades italianas de diferentes áreas vêm alertando sobre a oportunidade que a atual crise abriu às organizações criminosas.

— Esse é o melhor dos mundos para as máfias — afirma a advogada Vicenza Ronda, vice-presidente da Libera, uma das maiores associações da Itália no combate ao crime organizado.

O cenário favorece a expansão das atividades ilícitas na economia — inclusive nas negociações de máscara cirúrgica, item dos mais procurados no momento —, servindo para criar um consenso entre a população: o Estado é ineficiente e não consegue atender a todos. Com pequenos e médios negócios decretando falência, além do aumento do desemprego e da pobreza, parte da população acha melhor contar com a solidariedade do crime organizado, porque o suporte financeiro ilegal costuma chegar antes daquele prometido pelo governo.

Poder financeiro

Algumas cidades do país, em especial no Sul, já registraram cenas nos últimos dois meses que evidenciam a oportunidade criada pela pandemia: em Palermo, na Sicília, mafiosos distribuíram em bairros pobres o que foi chamado de “pacotes solidários” (cestas básicas) e até dinheiro. O episódio foi parar nos jornais e levou um integrante do clã siciliano a escrever em seu perfil no Facebook, após a repercussão, que se “orgulhava de ser mafioso” e poder “ajudar” a acabar com a fome de quem mais precisa.

Estima-se que mais de um milhão de pessoas em toda a Itália passaram a precisar de ajuda para comer após o início da pandemia, juntando-se aos outros 3 milhões que já passavam por dificuldades antes do coronavírus.

O poder financeiro das máfias permite a elas uma certa rivalidade com o Estado, sobretudo ao emprestar dinheiro para comerciantes e famílias em dificuldade. O governo italiano aprovou recentemente um pacote de 55 bilhões de euros para ajudar na recuperação do país. Só com o tráfico de drogas, a Ndrangheta (um dos maiores grupos mafiosos italianos, que tem conexões com o PCC no Brasil) movimenta por ano cerca de 40 bilhões de euros.

Há duas semanas, o chefe da polícia italiana, Franco Gabrielli, participou de uma conferência em um projeto da Interpol sobre a máfia e comentou que a Ndrangheta tenta aproveitar a crise da Covid para entrar na “produção de remédios e vacinas”.

No final de março, quando a quarentena na Itália ainda não havia completado um mês, o serviço secreto informou ao governo — o relatório vazou à imprensa — sobre o risco de uma nova expansão das organizações na economia formal, além de uma possível participação de seus integrantes em revoltas e convulsões sociais.

Para piorar, 498 pessoas condenadas por relação mafiosa saíram da prisão para cumprir a pena em casa por causa da emergência da Covid-19, o que acabou abrindo uma crise política no Executivo. Três dos presos beneficiados eram mafiosos considerados de alta periculosidade, submetidos a um regime restritivo que já previa o completo isolamento.

A saída desses presos — motivada por rebeliões que estouraram em diversos cárceres no início da pandemia — causou a demissão do chefe nacional do serviço penitenciário e quase derrubou o Ministro da Justiça, Alfonso Bonafede, que continuou no cargo após o Senado italiano rejeitar, no dia 20 de maio, uma moção de desconfiança apresentada pela oposição.

O governo reconheceu a falha — baseada numa lei ordinária — e apresentou um novo decreto para que os mafiosos voltem à prisão, mas o encarceramento de cada um deles deve ser avaliado individualmente pelos magistrados, o que levará algumas semanas.

— Esse é um péssimo sinal, a presença desses líderes nos territórios de origem fortalece ainda mais os seus grupos — disse ao GLOBO Alessandra Dolci, procuradora do Tribunal de Milão e integrante da direção antimáfia.

Controle difícil

A Itália tem uma legislação considerada uma das melhores do mundo no combate às organizações mafiosas, mas as ligações dos clãs com a política, instituições nacionais, regionais e municipais, além de empresas e o mercado financeiro, são apontadas como uma das dificuldades para enfrentá-las.

Dolci conta que o Estado italiano não tem tantos mecanismos para controlar os destinatários da ajuda financeira que começará a ser repassada pelo governo aos afetados pelo coronavírus. Ela cita como exemplo o pagamento de 25 mil euros — a fundo perdido — a pequenos comerciantes:

— É um controle muito difícil de ser feito, pois deve ser fiscalizado em cada cidade. A máfia pode se aproveitar e ser beneficiada na ponta. O melhor remédio é o governo agir rápido e promover a ajuda antes das organizações criminosas.

Raízes históricas

A máfia surgiu no Sul da Itália no século XIX. Hoje, o país conta com três grandes grupos históricos (Cosa Nostra, Camorra e ‘Ndrangheta, as três com atuação transnacional), além de outros menores, de alcance regional. A lógica de ajuda vista durante a pandemia tem raízes históricas: cuidar do território, transformando-o numa espécie de feudo, é fundamental para transformar a imagem de benfeitores em consenso social.

A procuradora Alessandra Dolci ressalta, contudo, que essa lógica sofreu alterações nos últimos anos: no Sul, o controle ainda continua sendo territorial, enquanto no Norte do país o objetivo principal é criar sinergia com empresários e expandir a atuação para ramos da economia como restaurantes, bares e cafés. A expansão chegou até mesmo ao setor sanitário, com a intermediação de compra e venda de máscaras cirúrgicas e material hospitalar.

O senador Sandro Ruotolo foi eleito este ano após uma longa carreira de jornalista, tornando-se um dos profissionais ameaçados de morte no país (e vivendo sob escolta armada) por causa de reportagens sobre a máfia. Ele conta que o principal desafio do Estado será chegar aos mais necessitados antes das organizações criminosas.

— Um problema sério é que a máfia tem relação estreita com os poderes políticos e econômicos, talvez seja a principal diferença das organizações criminosas do Brasil, por exemplo.

A advogada Vicenza Ronda, da Libera, diz que os grupos criminosos de todo o mundo vão se aproveitar da crise econômica e social provocada pela pandemia, não sendo a Itália uma exceção. No caso do país, há precedentes de outras emergências que abriram brechas e favoreceram a expansão das máfias, como a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e os terremotos que atingiram o centro da Itália nos últimos anos.