Em meio a greve e pressão, Tarcísio dobra aposta em privatizações em São Paulo
Governador paulista classifica de ‘ilegal e abusiva’ paralisação e diz que ela mostra a necessidade de levar adiante desestatizações

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, dobrou a aposta na privatização da Sabesp e de outras estatais após ser pressionado por uma greve organizada por funcionários da empresa de saneamento básico, do Metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Horas depois do início da paralisação, na manhã desta terça-feira, Tarcísio fez um pronunciamento no Palácio dos Bandeirantes onde subiu o tom contra os sindicatos e disse que a paralisação — classificada por ele como “ilegal e abusiva” — mostra que é preciso estudar as desestatizações.
Com apoio de funcionários da estatal de saneamento (Sabesp), ferroviários e metroviários paralisam nesta terça-feira nove linhas de transportes sobre trilhos na capital paulista em uma mobilização contra os planos de Tarcísio de conceder as três empresas, ao menos em parte, à iniciativa privada. Apenas as linhas privatizadas do Metrô e da CPTM mantiveram o funcionamento — o que foi colocado por Tarcísio como mais uma “vantagem” da desestatização.
— Dizem que são contra as privatizações. Mas quais são as linhas que estão funcionando hoje? Aquelas concedidas à iniciativa privada. Isso mostra que estamos na direção certa, que temos, sim, que estudar (as privatizações) — declarou o governador.
A paralisação passou longe de pautas usuais, como a reivindicação salarial, e adotou um tom político contra um dos principais projetos do atual governo. Representantes das três categorias cobram de Tarcísio um plebiscito para consultar a população sobre a desestatização da Sabesp e o avanço das concessões de linhas do metrô e trem. O argumento das entidades é que a entrega para a iniciativa privada significa um “desmonte dos serviços públicos”, o que pode resultar no aumento de tarifas do transporte e da água no estado.
Decisão nas urnas
Tarcísio sustenta que a privatização foi decidida nas urnas, com a sua vitória. Embora seja, de fato, uma promessa de campanha, a venda da Sabesp é rejeitada pela maioria (53%) dos paulistas, como mostrou pesquisa Datafolha realizada entre os dias 3 e 5 de abril de 2023. Somam 40% os que são favoráveis.
A pauta da privatização — uma marca do atual governador, que criou até uma secretaria específica para o tema — promete avançar nos próximos meses. O governo de São Paulo contratou uma consultoria da International Finance Corporation para estudar tanto a privatização da Sabesp quanto a concessão de linhas do serviço público de transporte coletivo metroviário. No primeiro caso, o valor pago à consultoria ligada ao Banco Mundial só será definido após o estudo ser concluído e ficar comprovado que a proposta trará benefícios significativos à população. Para o transporte coletivo, O Globo encontrou dois contratos, nos valores de R$ 62,5 milhões e R$ 71,2 milhões. Pelo menos um sem licitação.
No fim de julho, Tarcísio já havia anunciado que a sua gestão escolheu como modelo de privatização da Sabesp uma oferta adicional de ações (follow on) que permita a um único acionista privado ter maior participação na empresa, tornando-se um acionista de referência, ou seja, com participação acionária relevante. Na prática, a iniciativa privada teria significativo poder decisório sobre a gestão da empresa, embora o governo afirme que não deseja ter um único acionista como controlador da companhia.
A presidente do Sindicato dos Metroviários e Metroviárias, Camila Lisboa, diz que o planejamento da privatização desconsidera a segurança e a qualidade do serviço prestado à população e rebate a acusação, feita pelo governo, de que a mobilização teria motivação eleitoral.
— O tema da privatização, para nós, também é uma relação trabalhista, porque isso afeta nossos empregos e salários — diz a líder sindical.
Uma eventual privatização da Sabesp precisará passar pelo plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e receber apoio de ao menos 48 dos 94 deputados da Casa, mas ainda não há previsão de votação. O líder do governo, Jorge Wilson (Republicanos), diz não saber se haverá tempo hábil neste ano, já que restam pouco mais de dois meses de ano legislativo.
Estatais sem dinheiro no caixa
A principal razão que leva o governo Tarcísio de Freitas a querer privatizar todas as linhas do Metrô e da CPTM é a saúde financeira das empresas públicas, que vem piorando nos últimos anos. O governo entende que as empresas não têm condições de tocar as obras e projetos de novas linhas e estações — em 2022, a CPTM registrou R$ 432 milhões de prejuízo e o Metrô, R$ 1,16 bilhão. Isso porque a principal fonte de receita das empresas é a tarifa, modelo que se mostrou insustentável especialmente com a queda no número de passageiros vista na pandemia. Até hoje, o número de passageiros não retornou aos patamares pré-pandemia.
Segundo o governador, a CPTM e o Metrô passariam a ter “um novo papel”, mais focado na elaboração de projetos de expansão e melhorias do sistema, mas saindo completamente da operação diária das linhas.
Apesar da iniciativa privada operar quatro linhas do transporte sobre trilhos em São Paulo, todas elas foram construídas pelo poder público. O governo negocia com a CCR a expansão das Linhas 4 (Amarela) e 5 (Lilás), operadas pela empresa. A ideia é que a concessionária custeie a construção da estação Taboão da Serra na Linha 4 e de duas estações (Comendador Sant’Anna e Jardim Angela) na Linha 5, mas o orçamento e o projeto ainda estão em discussão.
Os planos de concessão de todas as linhas da CPTM para a iniciativa privada estão mais avançados, segundo O GLOBO apurou com a Secretaria de Projetos e Investimentos. A primeira a ser concedida na atual gestão deve ser a Linha 7 (Rubi), que liga a capital até Jundiaí. O ramal faz parte da licitação do Trem Intercidades Campinas, ou seja, a empresa que for escolhida para construir o novo trem ficará com a Linha 7, para ter um modal já pronto que possa gerar receita imediatamente. O leilão está previsto para fevereiro de 2024.
Essa mesma ideia deve ser colocada em prática para conceder as linhas 11 (Coral), 12 (Safira) e 13 (Jade), também previstas para o próximo ano: a empresa privada vai operar as linhas com a condição de construir novas estações na Linha Jade. Em 2025, está prevista a concessão da Linha 10 (Turquesa), que poderia ser concedida em um acordo que envolve a construção da futura Linha 14 – Ônix, que iria até Guarulhos.
Em relação ao Metrô, os estudos para privatização foram contratados em agosto e ainda estão em fase inicial, e até 2024 o governo deve decidir qual será o futuro da empresa, fundada em 1968.
Atualmente, São Paulo tem quatro linhas operadas pela iniciativa privada: 8 (Diamante), 9 (Esmeralda), 4 (Amarela) e 5 (Lilás), pelas empresas ViaMobilidade e ViaQuatro, que são braços de mobilidade da CCR. A mesma empresa também vai tocar a Linha 17 (Ouro), o monotrilho que está em construção (com recursos públicos) e vai ligar o Aeroporto de Congonhas ao Morumbi. A Linha 6 (Laranja) é o outro ramal em obras que já nascerá concedido, mas neste caso a construção é uma parceria público-privada (PPP) em que a Acciona é a empreiteira responsável.
Um dos principais argumentos contra a privatização do transporte é que as linhas 8 e 9, operadas pela ViaMobilidade, têm falhas constantes desde que foram privatizadas, em janeiro do ano passado. A empresa chegou a firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público, no qual se comprometeu a fazer melhorias nas linhas, antecipar investimentos e pagar R$ 150 milhões de indenização pela falta de qualidade na prestação de serviços.
Modelo precisa ser repensado, diz especialista
Coordenador de mobilidade urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Calabria explica que o modelo de transporte coletivo vigente no Brasil é custeado pela tarifa paga pelo usuário e precisa ser repensado.
— Nesse modelo atual, os ônibus e trens precisam estar lotados para serem rentáveis. E as empresas acabam tirando linhas que não têm tanta circulação ou mesmo reduzindo o número de viagens para fechar a conta. É um modelo que não se sustenta e está piorando cada vez mais, na medida em que o número de passageiros vem diminuindo ano a ano— explica ele.
De acordo com o especialista, o poder público precisa pensar em outros modelos de contrato, como o que leva em consideração o custo real do transporte, e encontrar receitas para investir na infraestrutura dos trens e metrôs.
— O governo pode, por exemplo, manter a infraestrutura sob a sua responsabilidade, garantindo a reforma das estações, e passar para o privado apenas a operação. O que não dá é para continuar com esse modelo atual, que só tem levado à precariedade do serviço. Hoje, o que vemos é o governo passando toda a responsabilidade para o privado. A concessão é uma forma de gestão, mas a responsabilidade contínua pública e os investimentos precisam ser feitos — afirma Calabria.