Juiz condena Estado a pagar R$ 400 mil à família de homem morto por PMs em suposto confronto forjado em Goiânia
"A dor e o sentimento de injustiça experimentados diante da execução de seu provedor e familiar, com a manipulação da cena do crime, merecem a devida reparação"

O juiz Vinícius Caldas da Gama e Abreu, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Goiânia, condenou, na segunda-feira (1º), o Estado de Goiás a indenizar a companheira e a filha de Marines Pereira Gonçalves, morto durante uma ação da Polícia Militar em abril de 2024, a R$ 200 mil cada – R$ 400 mil no total. O magistrado afastou a tese de legítima defesa e entendeu que os policiais simularam um confronto e manipularam a cena do crime para encobrir uma execução sumária. Na sentença consta, ainda, a fixação de pensão mensal de 2/3 do salário mínimo para as autoras.
Conforme o juiz, “a dor, a angústia e o sentimento de injustiça experimentados por uma companheira e uma filha diante da execução de seu provedor e familiar direto, com a manipulação da cena do crime para ocultar a verdade, são incomensuráveis e merecem a devida reparação”. Ainda na decisão, o juiz repreendeu a postura da defesa do Estado, que usou o termo “sessão mediúnica” para ironizar a comprovação de renda da vítima.
“A referência a ‘sessão mediúnica’ para provar rendimentos do falecido, além de ser descabida para a instrução probatória, macula a dignidade da figura da vítima e o sofrimento de seus familiares. Embora não se determine o desentranhamento do trecho, conforme solicitado, não serão toleradas novas condutas semelhantes, sob pena de aplicação das medidas previstas nos arts. 78 e 139, III, do Código de Processo Civil, inclusive com eventual imposição de multa por abuso processual ou ato atentatório à dignidade da Justiça”, declarou.
Advogada da família de Marines, Victória Pacheco Gratão Bezerra da Silva afirma que a decisão representa o reconhecimento jurídico de que Marines não morreu em um confronto, e sim foi executado por agentes do Estado. “Essa indenização não devolve a vida dele, mas é uma vitória importante, porque confirma oficialmente a ilegalidade da ação policial, a manipulação da cena e a responsabilidade estatal pela morte.”
Ela afirma que, para a família, é a primeira forma de Justiça: “O Estado admite, ainda que de forma indireta, que houve uma grave violação de direitos humanos. Agora seguimos na luta para que os responsáveis sejam punidos também na esfera criminal e para que casos como esse não se repitam.”
Segundo Victória, é possível ao Estado recorrer, contudo, “a decisão é muito sólida, baseada em provas técnicas e na própria pronúncia criminal dos policiais. Nossa expectativa é de manutenção integral da sentença, porque os fatos são incontestáveis”. Também atuou na defesa o advogado Rodrigo Alexandre Zulmar.
O Mais Goiás procurou a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) para comentar a decisão. A pasta disse, em nota, que “adotará as providências pertinentes quando o Estado de Goiás for intimado no processo judicial em questão”.
Registro em vídeo e ocorrência
Quatro policiais militares (PMs) do COD foram presos em 6 de abril como suspeitos de forjarem um confronto em ocorrência registrada no Setor Jaó, em Goiânia, no começo daquele mês – outros dois, posteriormente. Na ocasião, os agentes afirmaram que a morte de suspeitos foi uma reação ao serem atacados com tiros, mas um vídeo, gravado pelo celular de um dos mortos, mostrou que a ação se tratou de uma execução, visto que as vítimas estavam desarmadas.
Segundo a ocorrência registrada pela PM, Júnior José Aquino Leite, de 40 anos, e Marines Pereira Gonçalves, de 42 anos, que morreram na ação do COD, foram denunciados por um foragido da Justiça. De acordo com a denúncia, a dupla o havia procurado em uma chácara em Petrolina, na região metropolitana de Goiânia.
Ao não encontrá-lo, Júnior e Marines foram até a casa do foragido da justiça, em Trindade, invadiram o imóvel e furtaram diversos aparelhos. A ocorrência diz ainda que o denunciante afirmou que os dois estariam se passando por policiais civis e extorquindo pessoas com antecedentes criminais na zona rural de cidades próximas à capital.
Abordagem e confronto forjado
Procurados pelo Serviço de Inteligência do COD, os dois suspeitos, que estavam em um carro modelo HB20, teriam sido vistos trafegando pelo Setor Jaó. Nas proximidades do Centro de Treinamento do Vila Nova, eles foram abordados por uma equipe fardada, composta por um tenente, dois sargentos, e um soldado.
Os policiais relataram que, quando abordado, o suspeito que estava no volante do carro desceu e usou uma pistola para atirar contra a equipe, que revidou. Um tenente e dois sargentos, então, efetuaram nove tiros de fuzil e outros nove de carabina contra a dupla. O soldado que estava com a equipe e que dirigia a viatura não efetuou nenhum disparo.
Um dos abordados morreu na hora e o outro foi socorrido ainda com vida, mas não resistiu. Durante o registro da ocorrência, os PMs entregaram uma pistola e um revólver para a equipe da Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios (DIH) e afirmaram que as armas haviam sido usadas por eles contra a equipe.
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