VIOLÊNCIA

Abortos legais de menores de 14 anos se multiplicam por seis na década

No início do mês, o país tomou conhecimento da história de uma menina de 11 anos…

Abortos legais de menores de 14 anos se multiplicam por seis na década (Foto: Governo federal)
Abortos legais de menores de 14 anos se multiplicam por seis na década (Foto: Governo federal)

No início do mês, o país tomou conhecimento da história de uma menina de 11 anos que engravidou pela segunda vez, vítima de estupro, no Piauí. Na primeira gestação, a criança deu à luz o primeiro filho após sua família não autorizar o aborto. Há dois dias, os pais dela entraram num acordo e decidiram permitir a interrupção da segunda gravidez da filha. O caso dela se somará a outros abortos legais feitos em meninas menores de 14 anos, que vêm crescendo no Brasil.

Dados do Ministério da Saúde mostram que esse número se multiplicou por seis em dez anos. Em 2011, 16 procedimentos de interrupção de gravidez de meninas abaixo de 14 anos foram registrados no país. Em 2021, este número chegou a 97, média de oito abortos nessa faixa etária por mês.

Mas esse número é ainda tímido perto do de meninas que se tornaram mães antes de completar 14 anos. No ano passado, pelo menos 4.240 crianças nasceram de mães com menos de 14 anos. Incluindo as mães que já tinham completado 14, são 17.316 nascimentos. O número de meninas que tiveram que levar a gravidez até o fim é bem maior que o das que conseguiram interromper a gestação, mas houve uma queda de quase 38% nos registros em uma década. Foram de 6.797 partos de menores de 14 em 2011 para os 4.240 do ano passado.

De acordo com a legislação brasileira, qualquer relação sexual com menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável. A interrupção da gravidez é permitida no país em três situações: risco de morte para a mãe, feto anencéfalo e gravidez fruto de estupro.

Os dados aos quais O Globo teve acesso foram fornecidos pelo Ministério da Saúde após uma solicitação da deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ). Na resposta enviada em julho, o órgão afirmava que o número de 2021 ainda poderia ser atualizado, dependendo de revisões, mas seguem sem alteração informada.

Serviços inacessíveis

Especialistas acreditam que o aumento no volume de procedimentos para a interrupção de gravidez infantil é insuficiente para dimensionar a realidade brasileira e a série de fatores que levam meninas a se tornarem mães tão cedo.

— Meninas nesta faixa etária engravidam geralmente por conta de violências sofridas no âmbito da família, ou por pessoas conhecidas, e há todo um tabu. Os dados sobre o tema também mostram que essas meninas em geral são pobres e negras, periféricas, que não têm acesso à informação, à educação em sexualidade. Além disso, os serviços especializados de aborto legal estão concentrados em grandes centros, são poucos e não são acessíveis — analisa Sandra Lia Bazzo, coordenadora do Comitê Latino Americano para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) Brasil.

Atendimento obrigatório

O documento enviado pelo Ministério da Saúde à Câmara diz que, embora no país haja somente 114 centros especializados em aborto legal, “todos os serviços hospitalares com atendimento em ginecologia e obstetrícia devem atender às mulheres que demandam o procedimento, quando se fizer necessário e de acordo com a lei”. Procurada pelo Globo, a pasta não se pronunciou.

O baixo número de abortos legais em comparação com o universo de nascimentos nesta faixa etária sugere que a realidade afasta meninas de exercerem seu direito. Uma portaria editada em 2020 pelo então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, determinou que profissionais de saúde que acolham mulheres vítimas de violência sexual para a realização de aborto legal informem a autoridade policial sobre o caso e enviem material biológico que sirvam como evidência do crime. A medida foi amplamente criticada por ser um mecanismo que inibe mulheres de procurarem seu direito.

— Há uma falha na formação dos profissionais da saúde e também do Direito, seja por negligência ou omissão deste tema nos currículos ou por parte do Estado em não colocar o assunto em pauta. Isso tudo acontece porque aborto é crime no Brasil, e a criminalização incentiva uma estigmatização social. Profissionais de saúde não querem lidar com o tema por medo de serem estigmatizados. Isso aconteceu com muito mais força no governo Bolsonaro — opina a ginecologista e obstetra Helena Paro, professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do Comitê de Aborto Seguro da Figo (International Federation of Gynecologists and Obstetrics).

Desde o início do mandato de Jair Bolsonaro, que concorre à reeleição pelo PL, o governo busca criar obstáculos ao direito de interrupção da gravidez nos casos assegurados pela lei. A proibição do aborto é uma das pautas conservadoras defendidas pelo presidente que são reforçadas na campanha deste ano.

Em junho, o Ministério da Saúde sofreu críticas após afirmar equivocadamente em uma cartilha sobre o tema que não havia aborto legal no Brasil. Devido à controvérsia, a pasta realizou uma audiência pública, mas o evento reuniu majoritariamente pessoas contrárias ao aborto. Na ocasião, o secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, usou termos como “matar bebês na barriga” para se referir à interrupção da gravidez.