Educação

Com reserva de vagas, aulas da USP começam a perder ‘brancocentrismo’

Italo Araujo, 20, estava em São Paulo havia poucos dias quando soube que tinha conseguido…

Italo Araujo, 20, estava em São Paulo havia poucos dias quando soube que tinha conseguido entrar no curso de direito da USP. Ligou para a mãe, em Juazeiro do Norte (CE), para contar a novidade. “Filho, será que a gente tem dinheiro para pagar essa faculdade?”, ela indagou. “Mãe, pelo que falaram, aqui é de graça. Vou ver se é isso mesmo e te falo”, ele respondeu. Desde o ano passado, a Universidade de São Paulo tem recebido cada vez mais alunos como Italo, negro e de família de baixa renda. Gente para quem a gratuidade da mais prestigiada instituição de ensino superior do país não é um fato conhecido desde muito cedo na trajetória escolar.

Estudantes que, em muitos casos, são os primeiros da família a cursar ensino superior. Filhos de garçons, empregadas domésticas, caminhoneiros, porteiros. Ao entrar na instituição, eles têm pautado dentro e fora da sala de aula novos temas em diversas áreas do conhecimento –da educação à medicina, do direito à engenharia. Por outro lado, também colocam em evidência o racismo e os contrastes sociais do país.

O ingresso de jovens negros e de baixa renda na USP tem ocorrido de forma acelerada desde 2018, quando entrou a primeira leva de alunos selecionados pelas cotas para egressos de escolas públicas, pretos, pardos e indígenas.
A implementação do sistema ocorre de forma gradual. Começou com 37% das vagas destinadas a alunos de escola pública em 2018, neste ano passou a 40% e, até 2021, deverá chegar a 50% por cada curso e turno. Dentro dessas proporções, 37,5% das vagas são reservadas a autodeclarados pretos, pardos e indígenas, índice equivalente à presença desses grupos populacionais no estado.

A medida provocou uma mudança rápida e significativa no perfil do aluno, embora esses grupos permaneçam subrepresentados. Em cinco anos, de 2014 a 2019, a parcela de ingressantes de escola pública na USP passou de 32% para 42%, e a de pretos pardos e indígenas, de 17% para 25% –desses, 62% entraram pela cota. No mesmo período, a participação de alunos com renda familiar de até três salários mínimos cresceu de 17% para 25%, e a faixa de mais de dez salários encolheu de 33% para 26%.

A presença de alunos de fora de São Paulo também cresceu, de 8% para 13% em apenas um ano, de 2018 a 2019, principalmente devido à adesão ao Sisu, sistema de seleção nacional pelo Enem. Não há esse dado para anos anteriores. Se a mudança é visível para qualquer um que anda pela USP ou pisa em um restaurante universitário, dentro da sala de aula ela também é notada por parte dos professores.

“São alunos que trazem para a discussão questões regionais e sociais, problemas jurídicos que em geral não são portados por estudantes da classe média paulistana”, diz o diretor da Faculdade de Direito, Floriano de Azevedo Marques Neto, citando como exemplo de sua área, o direito administrativo, questões referentes à ocupação da cidade.

Na Escola Politécnica, o professor Mauro Zilbovicius também notou a diferença ao propor uma atividade sobre mobilidade urbana. “Bastou eles contarem a experiência de ir e vir todo dia da zona leste e pegar duas horas de ônibus que o debate já mudou. Eles trazem a vivência de outra cidade que não costumava vir à Cidade Universitária.”
Professor da Faculdade de Educação, Rosenilton Oliveira conta que muitas vezes são esses alunos que percebem lacunas na bibliografia e nos currículos –por exemplo, quando eles só tratam do desenvolvimento da criança sob o ponto de vista da civilização judaico-cristã.

O perfil mais diverso também se reflete nas atividades extraclasse, diz Debora Piotto, professora da pedagogia da USP de Ribeirão Preto. “No estágio que fazem em escolas públicas, os estudantes passaram a ter um olhar atento a questões referentes a discriminações raciais, relatando, por exemplo, perceber que alunos negros recebiam menos atenção, ficavam separados dos demais, estavam mais em situação de fracasso escolar, entre outras observações que só puderam ser feitas porque o tema da discriminação racial era trazido também pelos colegas negros”, diz.
Na medicina, o tema da saúde da população negra foi colocado em pauta por uma semana de atividades propostas pelos alunos cotistas.

Por outro lado, se a diversidade tem agregado conhecimento, também traz desafios. Entre eles, estão as deficiências do ensino médio público. Pró-reitor de Graduação da USP, Edmund Baracat diz que as análises de desempenho realizadas até o momento não mostram diferenças significativas, até porque a concorrência, com cotas ou não, é bastante alta. No caso do direito, por exemplo, o diretor da faculdade diz que o ingressante com menor nota no Sisu, que em regra seleciona os cotistas, teve pontuação melhor no Enem do que o que passou por último pela Fuvest.
Obstáculos maiores, porém, aparecem em áreas que exigem mais conhecimento de exatas e inglês. A Poli, por exemplo, tem aluno que ficou dois meses sem professor de matemática no ensino médio.

Os docentes da faculdade ouvidos pela reportagem dizem não notar diferença entre os egressos de escolas técnicas e os das particulares, mas quem veio de colégio público regular tem maior dificuldade.
Para superá-las, a faculdade vai lançar uma série de videoaulas de física e matemática, que serão disponibilizadas antes do início do ano letivo. As filmagens estão sendo feitas de forma a permitir que o aluno possa assistir aos filmes no celular –a preocupação em não colocar números muito pequenos surgiu da constatação de que muitos levam quase duas horas para chegar à faculdade, e o tempo no transporte poderia ser usado para essa atividade.
O professor Zilbovicius ressalta que a medida não é só para os cotistas. Aluno de escola de elite também sofre no primeiro ano na Poli, diz.

A experiência com a reserva de vagas, porém, reforçou a necessidade de atenção extra a esses conteúdos.
Para o docente, não é um grande problema. “Não aprendeu direito trigonometria? A gente ensina. O importante é ter vontade de aprender, e isso eles têm de sobra.” A Pró-Reitoria de Graduação também elabora um programa à distância de reforço de conteúdos do ensino médio.

Além disso, alunos têm se mobilizado para superar as dificuldades. No direito, dividiram-se para traduzir textos em inglês para os demais. A cooperação se tornou mais fácil porque agora não é só um outro que é negro ou vem da periferia, dizem estudantes que entraram antes das cotas. Prova disso é a disseminação de coletivos onde estudantes negros organizam atividades e trocam experiências. “A Poli antes era um mar de gente branca”, descreve Caroline dos Santos, 25, do 5º ano de engenharia, que integra um desses grupos. Ela e colegas relatam que a falta de outros alunos da mesma cor e origem social trazia um sentimento de solidão. Houve alívio com a chegada dos cotistas, mas a sensação persiste, pois ainda há subrepresentação.

Outros alunos relatam que a sensação de deslocamento na universidade é acompanhada por um afastamento do lugar de origem. “A família fica com muito orgulho da gente, mas essa admiração te coloca em um pedestal”, diz Larissa Alexandre, 23, aluna de medicina. “Não me sinto nem tão periférica para estar na periferia nem tão central para estar no centro.” Ela vai todos os dias do Itaim Paulista, no extremo leste de São Paulo, para a Faculdade de Medicina.

Na universidade, o contraste econômico influencia as relações sociais. “A gente não tem dinheiro nem para ir às festas aqui. É uma jornada solitária que desgasta o psicológico”, diz Mariana Novaes, 20, também da medicina.
“Nas férias é engraçado. Eles [alunos não cotistas] vão para várias partes do mundo”, comenta Letícia Chagas, aluna do direito. Aos 19 anos, ela foi eleita para ser a primeira presidente negra do mais que centenário Centro Acadêmico XI de Agosto, em uma eleição que contou muito com a militância dos outros cotistas. Alguns deles têm camisetas com uma provocação ao abismo social: “+EE [escola estadual] – Band [Colégio Bandeirantes, um dos que mais aprovam na Fuvest]”.

Não que não haja qualquer integração. Mas o fato de parte dos estudantes sofrer racismo e parte não sofrer já cinde os dois grupos ao menos nessa dimensão. Basta perguntar em um grupo de alunos negros e quase todos terão um exemplo ocorrido na própria USP para contar. “Um funcionário me parou e perguntou se eu era estudante. Eu estava com uma camiseta com o nome da faculdade”, diz Italo. “Quando passei pela portaria, o funcionário me desejou bom trabalho”, afirma Rafael Marques, 23, aluno de fisioterapia.

“Quando escurece, é comum as pessoas atravessarem a rua ao me ver na calçada”, relata Ygor Galhardo, 18, de engenharia de produção. “Quando desço a rampa, sinto que um monte de gente fica me olhando”, completa seu colega Victor Gonçalves, 21. Larissa e Mariana têm o mesmo relato: “é comum ouvir que eu não tenho cara de médica”. “E, quando coloco o jaleco, ficam tentando olhar o crachá para tentar entender”, acrescenta Thamires da Silva Alves, pós-graduanda.

A adoção de cotas pelas universidades públicas acirrou a concorrência pelas vagas que podem ser disputadas pelos alunos de escolas particulares. A consequência é que muitos estão diversificando suas opções na hora de se decidir qual prova prestar. A mudança é vista no Colégio Bandeirantes, na zona sul de São Paulo, que tem altos índices de aprovação nos processos seletivos mais tradicionais.

De 2014 a 2019, o número de faculdades nas quais os alunos foram aprovados quase dobrou, passando de 32 para 62, afirma Claudio Ribeiro, coordenador de processos de avaliação acadêmica e da Coordenadoria de Futuro e Carreiras da escola. O número inclui só instituições de ensino no Brasil, mas o interesse por graduações no exterior também vem crescendo. Segundo Ribeiro, 15% dos estudantes do Bandeirantes foram aprovados para estudar fora do país.

“Os alunos estão buscando novas oportunidades com base nesse novo cenário”, afirma. “Muitos dos nossos estudantes, inclusive, apoiam as cotas. Nós as tratamos como são: uma realidade.”
A lei que instituiu as cotas nas universidades federais foi sancionada em 2012, com prazo de implantação gradual até 2016, para chegar à proporção de 50% de ingressantes de escola pública, sobre a a qual é aplicado o percentual de pretos, pardos e indígenas na população do estado. A USP instituiu a reserva de vagas a partir do vestibular 2018.