RIO DE JANEIRO

Mulher diz ter sido estuprada no Carrefour em 2017

Cátia alertou que era mulher enquanto levantava o camisetão e mostrava o torso, na tentativa…

Uma mulher denunciou que foi estuprada no Carrefour do NorteShopping, no Cachambi, Rio de Janeiro, em 2017. (Foto: Tércio Teixeira/FolhaPress)

Cátia alertou que era mulher enquanto levantava o camisetão e mostrava o torso, na tentativa de evitar agressões às quais ela dizia estar acostumada. De dentro do calção, ela contou ter tirado um saco de bolinhos de bacalhau, que venderia para comprar crack, e um quilo de asas de frango, que pretendia comer.

Era 16 de março de 2017 e ela havia sido pega furtando no Carrefour do NorteShopping, no Cachambi, zona norte do Rio de Janeiro. Pela câmera, foi vista saindo sem pagar e atraiu os vigilantes. Afirmou que devolveria a comida, conta, e ligaria para a esposa para que levasse o dinheiro.

Apesar dos argumentos e gritos, ela afirmou à companheira e à Justiça que em seguida foi vítima de tortura.

O supermercado nega ter ocorrido violência no episódio. Os envolvidos foram indiciados após a repercussão do caso, mas ainda não foram acusados, e um deles segue trabalhando na empresa.

Na noite daquela quinta-feira, Cátia, que é negra, diz ter sido levada para uma salinha onde quatro ou cinco homens a teriam espancado por cerca de 30 minutos. Ali, ela relatou, eles também teriam inserido o cabo de uma escova de banho, comprida, em seu ânus.

“Ela falou que nunca apanhou desse jeito”, disse Claudia Elisa dos Santos, 48, mulher de Cátia, que também descreveu à reportagem a cena inicial deste texto. “Geralmente dão um chute na perna, um tapa na cara, falam para ir embora ou levam para a delegacia, mas dessa vez foi diferente. Quando a polícia chegou, ela deu graças a Deus.”

Cátia foi pega furtando por volta das 20h no supermercado, de acordo com o boletim de ocorrência. Foi atendida por um médico às 22h35 no Hospital Municipal Salgado Filho, depois de alegar estar sentindo dor na 23ª delegacia de polícia. O furto foi registrado depois, de madrugada. Esses três pontos ficam a menos de dez minutos de distância.

Pela natureza das denúncias, a reportagem optou por trocar o nome da vítima, mesmo que sua companheira tenha decidido se identificar. Cátia tem hoje 36 anos e está há alguns meses presa por outros furtos no Instituto Penal Santo Expedito, presídio feminino em Bangu. Deve sair em breve, segundo Claudia, que é revendedora de cosméticos e semijoias.

A esposa afirma que nos primeiros dias após o ocorrido Cátia apresentou febre alta e infecção fora e por dentro do ânus. Foi ao médico algumas vezes para drenar o pus, diz; ficou duas semanas de fralda e dois meses sem conseguir sentar direito.

A situação também levou a mulher a crises de choro constantes e perda de apetite, no relato de Cláudia, e a deixar as ruas e o crack por certo tempo, com medo de sair de casa —um quarto, cozinha e banheiro em uma viela da Cidade de Deus.

“Ela mora na comunidade, é dependente química, não tem estudo, não tem ninguém por ela. Por isso até hoje ninguém correu atrás de nada, a gente ficou com muito medo de eles pegarem ela na rua, fazerem alguma maldade depois”, conta Claudia. O casal chegou a ir na Defensoria Pública, mas não voltou mais.

A audiência de custódia, no dia seguinte à suposta tortura, foi descrita pela juíza Cristiana Cordeiro nas redes sociais, trazendo o caso à tona, depois que João Alberto Freitas foi espancado e morto por vigilantes de um Carrefour em Porto Alegre, em 19 de novembro.

A magistrada contou que se lembrava de uma presa em flagrante que chegou na sala do Tribunal de Justiça muito abalada, com hematomas nos braços e usando fralda. Sentava de lado na cadeira e apenas chorava. Só disse o que havia acontecido depois que a juíza se aproximou e permitiu que sua companheira entrasse, num procedimento pouco usual.

Cátia foi solta naquele dia, já que seu delito não incluiu violência ou ameaça, e foi absolvida sumariamente um mês depois (quando se entende que a denúncia é improcedente). Mas o Ministério Público recorreu, e em 2019 a Justiça mandou que se julgasse de novo, o que ainda não aconteceu.

O defensor público que a acompanhava na audiência de custódia, Eduardo Newton, diz que aquela foi uma das piores sessões de que já participou. O promotor Bráulio Gregório Silva, que já havia visto a mulher outra vez em que foi detida, também recorda que naquele dia ela estava com um comportamento diferente.

“Tinha acontecido alguma coisa ali”, diz. Ele afirma que foram tomadas todas as medidas cabíveis naquele momento, e que encaminhou o caso para a Central de Inquéritos do Ministério Público.

Mais de três anos depois, porém, ainda não há denúncia contra os envolvidos. Dois dias após o caso ser exposto por Cordeiro e publicado pela Folha, em 22 de novembro, um juiz voltou ao processo e mandou remeter o vídeo da audiência e o exame de corpo de delito ao MP pela segunda vez.

Apenas em 3 de dezembro, após a repercussão do caso, a Polícia Civil encaminhou o inquérito aberto na época ao Ministério Público. A 23ª delegacia (Méier) respondeu que indiciou os funcionários por agressão, mas que não houve relato de estupro.

Foram indiciados os dois funcionários do supermercado que acompanharam Cátia até a delegacia, Saulo Jean Ferreira dos Santos e Robson Moisés dos Santos (que são negros), apesar de ela ter dito à esposa que havia quatro ou cinco homens quando a violência ocorreu.

A vítima e o Carrefour não foram ouvidos na investigação. Questionado, o Ministério Público disse que agora “será verificada a necessidade de eventuais diligências a fim de concluir o entendimento sobre o caso” e que “prestará mais informações após a conclusão do procedimento”.

Supermercado questiona

A Folha teve acesso a dois laudos médicos de Cátia: um feito no dia do furto, no Hospital Municipal Salgado Filho, e o outro produzido no dia seguinte, no dia seguinte, na Central de Audiência de Custódia.

O primeiro informa que a paciente, lúcida, relata agressão e dor em região glútea e que há um abcesso (bolsa de pus) em região interglútea. Pede uma tomografia de pelve e indica remédios para dor. É inconclusivo, segundo dois médicos e uma perita criminal consultados pela reportagem.

O segundo responde “sim” à pergunta “há vestígios de lesão à integridade corporal ou à saúde da pessoa examinada com possíveis nexos causal e temporal ao evento alegado?”. Cita uma ferida entre o ânus e o cóccix, com sinais de inflamação e orifícios de 2 cm e 1 cm, mas diz que “o exame do ânus não evidenciou lesões com sinais de recenticidade”.

O Carrefour cita esses exames para dizer que as lesões já existiam antes e portanto não tinham relação com uma suposta agressão de funcionários. A empresa afirmou que fez uma rigorosa apuração para identificar, detalhadamente, os fatos da época, e afirma não ter havido irregularidade.

Claudia, porém, nega que as marcas já existissem. “Ela saiu de casa sem fralda, sem hematoma, sem sentir nada, estava andando normal”, diz.

O supermercado também menciona como prova de que a infecção precede o ocorrido a existência de um receituário médico de 14 de março de 2017, emitido dois dias antes do furto, em que se recomenda Cefalexina (antibiótico) e Nimesulida (antiinflamatório).

Claudia diz que a companheira foi ao posto de saúde por outros motivos: estava com problemas respiratórios, muita tosse e febre, talvez relacionados ao consumo de drogas.

Na nota, o Carrefour afirma que, de acordo com os envolvidos no caso, assim que o furto foi identificado, fiscais pediram apoio de policiais militares do posto que fica em frente à loja, o que foi visto por uma vigilante do shopping. Imediatamente, eles foram para a delegacia, onde foi registrado o furto.

O supermercado acrescenta que se colocou à disposição das autoridades para esclarecer quaisquer fatos, mas que “durante as investigações e trâmite da ação penal jamais foi acionado pela Justiça ou por qualquer outro envolvido para prestar esclarecimento sobre a suposta violência ou tortura”.

Diz ainda que “repudia qualquer ato de violência e se compromete a colaborar com as autoridades para esclarecer o caso, seguindo o rito natural de que julgamentos e acusações devem ser feitos pelos órgãos competentes e devidamente comprovados”.

Procurado, Robson Moisés, que na época era gerente de prevenção de riscos, disse por telefone que não tem autorização para dar nenhum tipo de esclarecimento sobre o Carrefour e que não se recorda do caso. Ele continua trabalhando na loja, segundo o supermercado.

A Folha não conseguiu contato com o então fiscal Saulo dos Santos. A empresa afirma que ele foi desligado em 2018 por performance de trabalho, sem relação com o episódio.

À polícia, na ocasião, Robson disse que, muito nervosa ao ser abordada por eles, Cátia disse que era recém-operada e por isso não fugiria, tirou parte da roupa e se jogou no chão algumas vezes. Ele também falou que os policiais a conduziram com cuidado para evitar qualquer lesão, mas ela tentou fugir e foi capturada novamente.

Hoje, Cláudia vai semanalmente ao presídio para levar mantimentos e aguarda ansiosa o dia em que a esposa vai voltar para casa para cozinhar, lavar roupa e ver o filho e o neto. Mantém ainda a esperança de que a mulher largue o vício e os furtos.