Eleições 2022

Próximo presidente do Brasil vai encarar mundo mais dividido, perigoso e desafiador

Independentemente do resultado eleitoral, o mundo que o novo governo brasileiro vai encontrar em 2023…

Cerco mais brutal da Guerra da Ucrânia termina em vitória russa em Mariupol
Cerco mais brutal da Guerra da Ucrânia termina em vitória russa em Mariupol (Foto: Reprodução - Vídeo - Twitter)

Independentemente do resultado eleitoral, o mundo que o novo governo brasileiro vai encontrar em 2023 será muito diferente de quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao poder, há 20 anos, e mesmo da realidade encontrada por Jair Bolsonaro em 2019. Baixo crescimento, multilateralismo em crise, falta de perspectivas para um desfecho da guerra entre Rússia e Ucrânia, acirramento das tensões entre China e Estados Unidos e o avanço do aquecimento global influenciarão a nova política externa brasileira.

Especialistas em relações internacionais ouvidos pelo GLOBO avaliam que, para encarar essa nova realidade, o Brasil precisará de pragmatismo, criatividade e coragem em várias frentes. Um exemplo é a reconstrução de sua credibilidade e a reaproximação de atores importantes do cenário mundial. Outro é o uso dos chamados “recursos de poder” a seu favor, como o status de fornecedor de alimentos para o planeta e a retomada da posição de interlocutor confiável, quando conversava com todos os governos, sem barreiras ideológicas.

— O cenário mundial em 2023 será bastante complexo, com uma inédita combinação de crises e fenômenos disruptivos que exigirão uma atualização da “grande estratégia” brasileira — afirma Ronaldo Carmona, professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG).

Ele avalia que a guerra na Ucrânia, sem desfecho previsível nos próximos meses, pode chegar a um confronto entre as grandes potências nucleares. Além disso, há no horizonte uma ameaça de recessão global, provocada por uma combinação de escassez de produtos e surto inflacionário, com a elevação das taxas de juros pelos países desenvolvidos.

— Por fim, há uma crise na globalização e um reordenamento das cadeias globais de produção. Tudo isso nos impacta diretamente — frisa.

Prioridade amazônica

Além da capacidade de prover alimentos e o potencial energético ainda subaproveitado, Carmona cita como pontos a serem explorados pelo futuro governo a capacidade de produção de minérios e a enorme biodiversidade.

— Para isso, precisaremos conceber uma estratégia de segurança nacional que possa mitigar nossas vulnerabilidades e promover nossos fatores de força, dentre eles, a questão amazônica, que deve ser uma grande prioridade nacional — ressalta o professor.

Dawisson Belém Lopes, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que em 2003, quando Lula assumiu, os EUA estavam mais preocupados com o Oriente Médio do que com a América Latina. Dois anos antes, houve os atentados do 11 de Setembro e os americanos invadiram o Afeganistão e, em seguida, o Iraque. Em 2019, quando Bolsonaro tomou posse, o presidente dos EUA era Donald Trump, seu aliado ideológico, que acirrou a competição com a China:

— Isso teve reverberações na América Latina, onde a presença chinesa é bastante forte — observa Lopes.

Apesar da troca de comando na Casa Branca, hoje um dos poucos consensos em Washington é se contrapor à China, ressaltou o professor da UFMG. Biden não mexeu no tarifaço de Trump sobre as importações do gigante asiático, por exemplo. Queria deixar como elemento de barganha em futuras negociações.

— Mas a guerra na Ucrânia mudou tudo. Os EUA queriam que a China usasse seu poder de pressão sobre a Rússia para mediar a paz, mas Pequim já deu sinais de que não quer negociar acordo com os interesses do Ocidente. Washington decidiu advertir Pequim a não fazer o mesmo com Taiwan — acrescenta Nelson Franco Jobim, professor das Faculdades Integradas Hélio Afonso (Facha). — A guerra não interessa à China, que quer estabilidade, mas a vitória da Ucrânia parece não ser algo desejado por Pequim, porque fortaleceria a Otan, e a China também teme as alianças feitas pelos EUA com Austrália, Japão, Índia e Vietnã — completa Jobim.

Disputa tecnológica

O diplomata Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, ressalta os desafios que esse cenário de disputa entre potências trará para o Brasil:

— Biden tomou medidas para tornar mais difícil o acesso dos chineses à tecnologia americana. Isso em algum momento vai repercutir na tecnologia militar, na compra de armamento e no próprio debate sobre o 5G — afirma, lembrando que, no caso da Ucrânia, o Brasil, ainda que condenando a invasão russa, adotou depois uma orientação mais neutralista, “coisa que cada vez é menos tolerada pelos dois lados”.

Coordenadora de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), Fernanda Magnotta destaca que o momento atual é de transformação das estruturas de governança. O mundo saiu da hegemonia dos EUA e existe um embate com vias alternativas, cujo efeito mais visível são as tensões envolvendo China e Rússia.

— Isso está balizando todas as ações dos líderes e determinando as escolhas geopolíticas — pontua Magnotta.

Ela cita outros temas que ganharam força na agenda global, como imigração, emergências climáticas, a desinformação e a possibilidade de surgimento de novas pandemias. Esse conjunto, ressalta, cria um ambiente instável e difícil de administrar.

— São coisas que afetam os humores e que vão além das fronteiras. Com lideranças fascistas na Europa e a extrema direita nos EUA, as pessoas passam a buscar culpados para responsabilizar pelas suas mazelas. Tudo isso vai criando um ambiente hostil. E a guerra na Ucrânia se soma a essas placas tectônicas, o que cria instabilidade — afirma Magnotta.

Para ela, o Brasil terá de reapresentar suas credenciais para o mundo, após anos de relativo isolamento, a fim de aproveitar algum tipo de oportunidade que surgir:

— O grande desafio no plano global se soma a dificuldades internas, com lições de casa que temos de fazer para sermos levados a sério — diz.

Em clubes antagônicos

Marcos Caramuru, ex-embaixador na China e conselheiro consultivo do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), considera importante uma reaproximação com as duas maiores economias da União Europeia: França e Alemanha. E, diante da crise no sistema multilateral, aponta como caminhos os acordos bilaterais e regionais.

Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, afirma que a manutenção da tradicional estratégia brasileira de equidistância entre os polos de poder é o maior desafio externo do próximo governo. Ele acredita que o Brasil se tornará mais forte para resistir às pressões de Washington e Pequim se melhorar sua imagem no combate ao desmatamento e passar a ser visto como aliado no combate a pandemias, por exemplo.

— O Brasil é um dos poucos países do mundo que conseguem, de forma crível, fazer parte de clubes totalmente diferentes ou até antagônicos — diz Stuenkel, que citou como exemplos o G20 (formado pelas maiores economias do mundo), o Brics (sigla do bloco integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e a própria OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o chamado “clube dos ricos”, ao qual o Brasil está em processo de adesão.

Tendências que trazem tensão

Rivalidade entre EUA e China: O que era uma competição entre as duas maiores economias do mundo ganha contornos de rivalidade aberta. A hostilidade começou a se agravar no governo de Donald Trump (2017-2021), com a imposição de tarifas às exportações chinesas e restrições às vendas à China de alta tecnologia americana. No governo Biden, as relações pioraram com a criação de uma aliança de segurança entre EUA, Austrália e Reino Unido; a guerra na Ucrânia, na qual Pequim se posicionou com a chamada “neutralidade pró-Rússia”; e os indícios de mudança na posição americana em relação a Taiwan, que a China considera parte inalienável do seu território.

Efeitos da guerra na Ucrânia: A invasão russa da Ucrânia, que completou sete meses, uniu os EUA e a União Europeia contra Moscou e causou efeitos drásticos nos mercados de combustíveis e alimentos, quando a economia global mal se recuperava dos impactos da pandemia da Covid-19. Sem perspectiva de solução, o conflito se agrava e corre o risco de se expandir, com a anexação russa de terras ucranianas e ameaça de uso de armas nucleares. Os EUA crescentemente enquadram a disputa sob a lente de um conflito entre democracias e regimes autoritários, pressionando seus parceiros.

Aquecimento global: A perspectiva de que o aquecimento do planeta possa ser contido a menos de 1,5ºC em relação aos níveis pré-Revolução Industrial, considerado o limite antes de fenômenos climáticos dramáticos, se torna cada vez menos factível. A guerra voltou a pôr os combustíveis fósseis no centro da geopolítica e adiou metas de redução do uso do carvão. Ao mesmo tempo, a tendência de veto às compras de produtos de áreas desmatadas cresce da Europa à China, importantes parceiros do Brasil.