Série Especial | Na mira do despejo

Alto da Boa Vista: como no Parque Oeste Industrial

“O Paulo, sabe, extorquia a gente.” Yanne Araújo da Silva é uma das líderes do…

Como no Parque Oeste Industrial
Como no Parque Oeste Industrial

“O Paulo, sabe, extorquia a gente.” Yanne Araújo da Silva é uma das líderes do movimento da Ocupação do Alto da Boa Vista, em Aparecida de Goiânia. Ela, que participa da associação de moradores, explica que no assentamento já houve infiltrados. Inclusive, ela acredita que por causa deles a juíza foi rígida na decisão pela retirada de mais de 300 famílias do local. “O cara [suposto proprietário] não conseguiu provar que a terra era dele. Mas juíza tem essa impressão. Acho que é por causa do Paulo, que extorquia a gente.”

Paulo foi o primeiro representante da associação, diz Yanne. De acordo com ela, um homem corrupto, que extorquia os moradores e não se preocupava com o bem estar daqueles que vivem ali. Além disso, um infiltrado que levou gente do pior tipo para a ocupação.

Ela explica que, atualmente, mora com os três filhos (duas meninas e um menino) na barraca da mãe de uma amiga. “Desmascarei muitas pessoas poderosas que estavam aqui, aí fui ameaçada, então não fico mais na minha barraca. Já caiu miliciano lá dentro”, relata. Ela aponta para a filha e diz: “Essa menina, quando virou as costas para chamar meu genro, que estava dentro da minha casa, dispararam tiro. Não tem como ficar lá, ainda. Eles (as crianças) estão com psicológico abalado (sic).”

A barraca de Yanne fica mais no final da ocupação, longe da Avenida Cristus, na Vila Delfior, que faz divisa com a área . A de sua amiga está mais próxima da rua, perto de outros moradores e da associação. “Tinha gente infiltrada. Um rapaz, que era guarda municipal. E esse Paulo, ele trouxe facção aqui para dentro, miliciano…”, reforça. “Muitos mudaram de medo e outros estão na resistência, porque não têm para onde ir.” Segundo ela, muitos vêm para tentar destruir o movimento de dentro para fora.

No Alto da Boa Vista

Yanne explica que esse Paulo foi representante da associação dos moradores. O homem cobrava cerca de R$ 50 por mês das famílias ocupantes para a associação, segundo ela. “E R$ 500 para doar o lote de quem fosse deixar o assentamento”, disse. “Então, a juíza ficou sabendo de tudo isso”, relatou ainda, indignada, tentando entender a decisão. “Muita gente deixava de comer para dar esse dinheiro para ele”, lamentou ao lembrar.

Além disso, ele não deixava que os moradores construíssem casas de alvenaria. “Falava que não era para construir, para o povo derrubar… Que nós íamos perder [a ocupação], porque estávamos construindo de alvenaria. Ele mesmo tinha duas casas de alvenaria. Chamou uma facção, fez uma reunião, esse Paulo, e falou que estávamos perdendo aqui por causa de duas casas sendo feitas de alvenaria”, detalhou a atuação do homem, que ela disse querer apenas tirar vantagens dos locais. 

Mas não era só ele. Havia, ainda, outro homem. Vitor. “Veio aqui, também, dizendo que era assessor do prefeito, dizendo que já estava ganho, que tinha mais de dez processos. Dizem que por onde ele passa, não volta mais”, descreve a fama do cidadão. “Ele chegou aqui, montou uma tenda, e falou: ‘Eu conheço o prefeito, faço parte da Comissão de Direitos Humanos’. Ele falava muito bonito. O Paulo também. Mas nenhum deles queria andar com nós.” Os dois foram expulsos da comunidade na segunda metade do ano passado.

Yanne: “Desmascarei muitas pessoas poderosas que estavam aqui, aí fui ameaçada, então não fico mais na minha barraca” (Foto: Francisco Costa)

Infiltrados

Paulo e Vitor, segundo a líder do movimento, impediam, por exemplo, a entrada do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). “O MLB tem nome. É sério, não ia estragar o nome deles. Eles não cobram dinheiro, pelo contrário, trazem apoios. Quando chegam doações eles trazem tudinho. A maioria das crianças que estão estudando, eles doaram mais de 300 kits de escolaridade.”

Jackeline Pires da Silva também é membro da associação de moradores. Segundo ela, Vitor pregava a apatia dos ocupantes. “Dizia que a gente não precisava fazer manifestação, que isso não ia garantir habitação…. Isso não funciona desse jeito”, lembrou. Porém, com o MLB, segundo ela, tem sido ensinado aos moradores se mobilizar. “Pois sem mobilização não tem como.” 

O homem chamado de Vitor, inclusive, chegou dizer que só teria direito ao lote e à doação quem fizesse uma credencial. “A gente é uma ocupação. Ainda não ganhou a terra. Os próprios moradores colocaram ele para correr.” Ela celebra: “Os que faziam coisa errada [Vitor e Paulo] já saíram.”

“Em todo lugar tem pessoas erradas. Se eu disser que aqui não tem coisa errada vou estar mentindo, mas não cabe a nós da comissão fazer uma triagem, cabe às autoridades”, retomou Yanne.

Apesar de tudo, Yanne gosta de seu lar – que pode ou não ser provisório. “De noite é tão calmo, que eu falo para você: pode dormir com as portas abertas.”

Esse, pelo menos, era o sentimento dela, que é membro da associação. “Agora não estamos podendo [dormir de portas abertas] devido ao povo que eu creio que é coisa mandada. Tem pessoas aqui que se vendem. Tudo que acontece aqui, lá fora tá sabendo, as autoridades. Se for preciso, a gente pegar e ficar todo mundo em um espaço e deixar o outro para ele, estamos dispostos a fazer isso (sic)”, propõe a possibilidade de uma negociação para redução do espaço, se for garantir a permanência dos ocupantes. 

Modelo Parque Oeste

A situação, com infiltrados remete à ocupação do Parque Oeste Industrial. “Nos dias que antecederam a entrada dos policiais, eu fui seguida para todo o lugar que iria por diversos policiais à paisana. Recebíamos informações de que policiais foram trazidos do interior para a capital, só para participar da operação”, revela uma professora que esteve no assentamento, há mais de 15 anos, e conversou com o Mais Goiás, recentemente, para as Crônicas Especiais dos 15 anos do Parque Oeste Industrial

No começo dos anos 2000, 4 mil famílias que buscavam moradia foram acometidas por uma ação policial, na desocupação do Parque Oeste Industrial, em Goiânia, que teve como saldo dois mortos (segundo dados do governo), 16 feridos a bala, um paraplégico, 800 detidos. “Nunca imaginei que eu, apenas uma professora da educação infantil, um dia viveria tudo o que eu passei na Ocupação do Parque Oeste Industrial”, relatou a professora. 

“A ocupação tomou uma proporção gigantesca. Com isso, havia os riscos. E enfrentamos eles, nos unindo cada vez mais, para superar o problema de falta de comunicação, que existia no começo. Na ocupação, minha barraca era muito visitada. Diversas pessoas passavam por lá: sempre para tomar um café, conversar sobre ideias e manter a união. Eu e meu marido atendíamos todos com o maior prazer. A visita de um homem, inclusive, se tornou ‘de lei’. Ele se tornou um grande amigo. Sempre me tratando como ‘dona’ e meu esposo como ‘dono’, com o maior respeito”, prosseguiu. 

E por fim: “Vários detidos foram levados para lá. Imprensa de todo o estado e outros lugares do país estava na porta. Fui orientada a não falar nada e encaminhada a uma cela. Foi quando eu tive uma horrível surpresa. Ouvi alguém chamar meu nome. Mas antes de dizê-lo, com todo o ‘respeito’, veio um ‘dona’ antes. Aquela voz me era familiar. Olhei. Mas não pude acreditar no que os meus olhos viam. Era o homem que sempre estava na minha barraca. Que sempre tomava café comigo e com o meu marido. Que se fez de amigo o tempo todo. Ele era policial militar e estava infiltrado para saber os detalhes da minha rotina, os passos da minha família.”

Interesses ocultos

De volta ao contexto do Alto da Boa Vista, Yanne – líder da ocupação – declarou, ainda, que o suposto proprietário de lá “é um laranja”. “Não tenho muito estudo, mas Deus me deu uma visão.” Para a moradora, o interessado maior é o Procurador Geral do Município de Aparecida de Goiânia, Fábio Camargo.

Ela recorda que, em 8 de janeiro passado, houve uma intervenção no assentamento, com viatura, conselho tutelar e mais. Com ameaças, inclusive, de retirar filhos de suas mães no dia da reintegração. “Ele disse que ia interditar tudo. E falei que ninguém ia assinar nada. Ele viu que o povo ia ter resistência, montou no carro e foi embora.” Segundo ela, em 2018, no começo da ocupação, muita gente assinou “um papel” para sair, porque não tinha estudo. “Essa terra vale milhões”, conjecturou.

A prefeitura de Aparecida de Goiânia, por meio de nota, informou que o procurador Fábio Camargo nega as acusações. Além disso, “Sobre a desocupação da Fazenda Quinta da Boa Vista, a Procuradoria Geral do Município de Aparecida explica que a decisão foi tomada pela juíza da Vara de Fazenda Pública Municipal, Vanessa Estrela, que deferiu o pedido de reintegração de posse ao proprietário da área e que, por parte da PGM, coube apenas intermediar as reuniões”.

Ainda segundo a PGM, por se tratar de processo judicial, ela está responsável apenas pelas tratativas do caso. “O procurador Fábio Camargo explica que desde a decisão judicial, que determinou a desocupação da área, vem sendo ameaçado nas redes sociais e via telefone. A Procuradoria somente está acompanhando o caso e que município não é parte no processo”.

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