Série Especial | Na mira do despejo

Alto da Boa Vista: hospitalidade, alegria e desejo de continuar sob um teto

“Dali avistamos homens que andavam (…), uns sete ou oito. A feição deles é serem…

Hospitalidade, alegria e desejo de continuar sob um teto
Hospitalidade, alegria e desejo de continuar sob um teto

“Dali avistamos homens que andavam (…), uns sete ou oito. A feição deles é serem pardos, maneira d’avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. (…). Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus.” Estes trechos, da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manoel sobre o descobrimento do Brasil, redigido em 1º de maio e 1.500, Porto Seguro, Bahia, veio à mente deste repórter durante uma visita à Ocupação Alto da Boa Vista.

Da Avenida Cristus, na Vila Delfiori, é fácil ver o espaço, que abriga cerca de 350 famílias. São mais ou menos mil moradores, sendo, destes, 150 crianças. Quase todas na escola, garante Yanne Araújo da Silva, uma das líderes do movimento, que participa da associação de moradores. 

O Mais Goiás visitou a ocupação no horário do almoço. Assim como outras crianças, era hora do menino Marconi se preparar para ir à aula. No fogão, a comida era feita pela mãe: tiras de frango fritas e arroz. O cheiro podia ser sentido do lado de fora. Assim como a esposa, o pai, Leandro de Morais Sudário, está desempregado.

O barraco da família tem 9 x 30 m² e a divisão foi feita de forma que cada um tivesse mais privacidade: quarto do casal, do adolescente, banheiro, cozinha e uma pequena sala onde ficam guardadas as bicicletas que os três usam para se locomover pela cidade. O chuveiro fica de fora da casa, aos fundos. A família, feliz ao receber este repórter, mostrou tudo e falou sobre a vida no local.

 

O cuidado e o zelo são notáveis na horta que é cultivada: maracujá gigante, mandioca, ervas, banana, pimenta, cebolinha, alface, todos plantados e colhidos para subsistência. Galinhas são criadas para a produção de ovos. Dois cachorros e um gato são de estimação da família. “A vida na ocupação é boa. Aqui todo mundo é família”, afirma Leandro. O relato dá uma ideia do tipo de relação que existe na vizinhança e confirma os relatos de outros moradores colhidos pela reportagem.

Desempregado, Leandro vive com a esposa e o filho na ocupação (Foto: Bárbara Zaiden)

Apesar de não estar em emprego formal, Leandro informa que o assentamento recebe doações e, assim, é possível tocar a vida. “Então, com a decisão da juíza fico triste demais. Vivo pensando nisso. Mas é assim, mesmo. Vamos entregar na mão de Deus. Estou aqui há um ano e cinco meses e a expectativa é continuar.”

Comunidade

Assim como Marconi, a pequena Maria Isabela, de quatro anos, tomava banho e se arrumava para ser levada para a escola. Ela tem quatro anos. A irmã, Isadora, um bebê de um ano, nasceu na ocupação. O pai delas estava trabalhando. A mãe das duas é a jovem Iranete Diniz, que recebeu este repórter no barracão de três cômodos. 

Ela diz que que tem esperança de continuar no lugar e medo de um possível despejo, pois a família não tem para onde ir. E faz um apelo: “Eu espero que o poder público olhe por nós. Aqui tem muitos deficientes, idosos, pessoas sem ter para onde ir. Espero que a juíza tenha misericórdia de nós”.

Segundo ela, é bom morar no Alto da Boa Vista. “Tranquilo e seguro. Uma pessoa ajuda a outra. Viver aqui representa muito. Quero moradia para mim e para as meninas”, diz a mãe, de 22 anos.

O mesmo medo de Iranete é o que aflige dona Francisca Alves de Lima, que tem filho com necessidades especiais. Ela explica que Welbert tem a mentalidade de uma criança de 7 anos, apesar de ter 39. Ele recebe o Loas (o Benefício de Prestação Continuada – BPC), mas fora isso, não tem nenhum outro tipo de ajuda do poder público. A mãe, que vive sozinha com o filho, não pode trabalhar, pois ele não pode ficar sozinho. “Não recebo Bolsa Família, não tenho onde morar. Mas da comunidade eu tenho ajuda. Se sair daqui não terei para onde ir.”

E Dona Francisca não tem vergonha de dizer que essa aflição já a levou às lágrimas: por conta da decisão da juíza, ela já chorou muito. “Estou aqui há um ano e minha vida melhorou muito. Não melhoramos mais a barraca porque estamos esperando a decisão da juíza.” 

É pequena Isadora, de um ano, nasceu na Ocupação (Foto: Francisco Costa)

Decisão

No último dia 29 de janeiro, a juíza Vanessa Estrela confirmou a decisão de despejo da Ocupação do Alto da Boa Vista, em Aparecida de Goiânia, mas sem estipular a data. A mesma decisão já havia sido proferida, anteriormente, em meados de 2019. Nos próximos dias, antes da data ser definida, a Defesa Civil [Vigilância Sanitária e Bombeiros] deve ir ao local para verificar a situação da invasão e o galpão para onde as famílias devem ser encaminhadas, conforme relatado por Fábio Camargo, procurador do município. Este espaço será providenciado pelo autor da ação.

A defensora pública Tatiana Bronzato, que acompanha o caso, atua de forma coletiva na defesa das famílias e afirmou que, após a vistoria da Defesa Civil, a ação será novamente aberta para o contraditório. Segundo ela, o intuito é lutar para que as famílias não fiquem em situação de rua.

Os moradores, por sua vez, na mesma data, decidiram em assembleia que vão permanecer no assentamento. Eles contam com o apoio do Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas (MLB).

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