FOME

Furto de comida para matar fome não deveria ser crime, diz Defensoria

Furto famélico é aquele cometido por estado de necessidade, ou seja, quando a pessoa precisa…

Prisão por furto famélico não tem data para acabar
Prisão por furto famélico não tem data para acabar (Foto: Pixabay)

Furto famélico é aquele cometido por estado de necessidade, ou seja, quando a pessoa precisa comer ou de algum remédio. A Defensoria Pública de Goiás (DPE-GO), em Goiânia, teve 125 assistidos em casos de audiência de custódia de julho a outubro. Destes, 22 por furto famélico. Segundo Luiz Henrique Silva Almeida, que titular da 4ª Defensoria Pública Especializada Criminal da Capital, infelizmente este tipo de prisão não tem prazo para acabar.

Ele lembra de vários. Entre eles, de um homem de 38 anos que furtou um chinelo e um pedaço de carne (totalizando cerca de R$ 100) e foi preso assim que deixou o supermercado. Casado, durante a pandemia ele perdeu o emprego de gerente de bar. Todos os itens furtados foram restituídos ao estabelecimento, que alertou as autoridades, que prenderam o homem.

Provavelmente envergonhado, permaneceu em silêncio na Central de Flagrantes e não quis avisar os familiares. A Defensoria Pública encontrou as três irmãs e a esposa. Após a audiência de custódia, a Justiça determinou fiança de R$ 500. A família do homem que precisou roubar chinelo e carne, pagou.

“Embora não tenhamos dados anteriores ao período de julho a outubro, na prática e dia a dia começamos a perceber o incremento desses fatos. Resolvemos, então, fazer esse levantamento, que comprovou a situação”, explica o defensor público sobre a percepção do órgão e necessidade de fazer este levantamento.

Discussão sobre o furto famélico

Segundo o defensor, até existe uma discussão ampla sobre o tema para que o próprio delegado possa fazer uma análise e arquivar o inquérito – não especificamente sobre furto famélico, mas de modo geral -, mas não existe uma situação de viabilidade concreta. “Mas não é algo que esteja efetivamente a caminho de virar lei”, lamenta.

“Discutimos, pois vemos o absurdo que é. Não é um crime, exatamente. É tão irrelevante, não deveria nem ser suficiente para movimentar audiência de custódia. Movimenta carceragem, fórum, movimenta juiz, promotor, defensor, depois encaminha… Toda essa movimentação não justifica a irrelevância desse fato.”

Para ele, a questão é social. “O ideal seria encaminhar a programas assistenciais.” E ele cita, ainda, que o número de prisões poderia ser maior. Não ocorre, pois muitos donos de estabelecimento não chamam a polícia, por sentir algum tipo de empatia ou por outro motivo.

Preconceito

E ele justifica, também, a falta de empatia: aporofobia. “É aversão a pobreza. Temos que dar o nome as coisas. Falamos de racismo e outros preconceitos, mas o preconceito aos pobres existe. Quer marginalizar aquela pessoa. Muito casos de furtos não chegam às autoridades, porque as vítimas tiveram empatia ou bom senso de verificar a situação como estado de desespero”, aborda.

Em outras situações, ele afirma que a vítima é um supermercado e o funcionário não pode tomar outra decisão, que não acionar as autoridades. “Então, fazem o procedimento da segurança, que aciona a polícia e se isentam. É a orientação.”

Insegurança Alimentar

Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) informam que insegurança alimentar no Brasil chegou a 9% no último trimestre de 2020, ou seja, 19,1 milhões de brasileiros. A última vez que houve um número tão alto foi em 2004, quando quando 9,5% da população convivia com a fome no dia a dia.

Do começo da pandemia da Covid-19 para cá, segundo relatório O Vírus da Fome se Multiplica, da Oxfam Brasil (Comitê de Oxford para Alívio da Fome), o percentual de brasileiros em extrema pobreza quase triplicou. O número subiu de 4,5% para 12,8%. No fim de 2020, eram 116 milhões de brasileiros em algum nível de insegurança alimentar.

“Não há dúvidas de que é crescente o empobrecimento da população, o que leva as pessoas a praticarem esse tipo de conduta, por completa necessidade. Temos visto pessoas revirando lixo, comprando ossos para ter o que comer.”

Ele cita, ainda, que esse tipo de caso cresce em todo o País. A cesta básica em Goiânia, em outubro, chegou a R$ 538,61, quase meio salário mínimo (R$ 1.100). Em contrapartida, levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de agosto, revelou que a cada 100 goianos, 24 vivem com até R$ 450 por mês.

Furto famélico

Ainda ao Mais Goiás, Luiz não existe a figura do furto famélico tipificado em lei, mas o furto, que é subtrair algo de alguém. Trata-se de um nome para explicar este “crime” cometido por fome, que é, na realidade, a excludente pelo estado de necessidade. “Praticou porque necessitava de alimentos ou mesmo remédios.”

Por não existir, a polícia não faz análise de insignificância. Então, não há o arquivamento de ofício do delegado. “Por isso passa por audiência. É o promotor quem analisa se continua ou arquiva.”

Desta forma, o defensor público Leonardo Stutz, titular da 1ª Defensoria Pública Especializada Criminal da Capital, analisa que a punição judicial deveria ser o último recurso adotado a essas pessoas. Ele diz que as medidas punitivas não solucionam o problema e defende que a prisão dessas pessoas não trará benefícios. Nem para a sociedade e nem para o indivíduo.

Criminalista

A advogada criminalista Juliana Pereira de Melo também comentou o assunto ao Mais Goiás. Segundo ela, “quando tratamos sobre furto famélico precisamos ter em mente como esse crime se caracteriza e as razões pelas quais quem o comete esse crime é isentado”. Ela revela que, apesar da prisão, existem “excludentes de ilicitude” que garantem a liberdade ao autor.

“O agente não pode ser um criminoso habitual (mesmo com o furto de alimentos), a subtração do item deve ser o único recurso que essa pessoa tem e que o item seja capaz de suprir diretamente a urgência. Deve existir ainda a insuficiência dos recursos provenientes do próprio trabalho ou a impossibilidade de trabalhar. É diferente de roubo. Nesses casos não pode existir violência, ameaça, uso de armas”, aborda.

Desta forma, ela explica que o Estado só obtém essas respostas por meio de investigação – por isso a prisão. “Ninguém está isento de ser investigado, seja por qual razão for. Eu e você podemos, por exemplo, sermos investigados por nossas condutas. Mas, nos casos de prisão em flagrante, essa situação nos salta aos olhos e não nos parece razoável.”

Ainda segundo ela, o trâmite jurídico dessa situação é a mesma como para os demais tipos de crime. Ela explica que a análise será realizada na própria audiência de custódia ou por mecanismos judiciais a serem propostos pelo próprio advogado ou pela defensoria pública.

Por fim, ela lamenta: “Temos que ter em mente que se para alimentar, uma pessoa tem que furtar, o Estado está transferindo um problema para a sociedade. Ao final, vejo duas vítimas da falta de cumprimento do dever do próprio Estado.”

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