SOB ATAQUES

Irmãs acusadas de espalhar coronavírus abandonam cidade na divisa de Goiás

As irmãs Dalylla Lopes, 27 anos, Talytta, 22, e Samylla, 21, decidiram ir embora de…

Lígia, Dalylla, Talytta e Samylla: filhas relatam viver pesadelo após morte de mãe em decorrência da covid-19
Lígia, Dalylla, Talytta e Samylla: filhas relatam viver pesadelo após morte de mãe em decorrência da covid-19

As irmãs Dalylla Lopes, 27 anos, Talytta, 22, e Samylla, 21, decidiram ir embora de Alto Araguaia, município mato-grossense que fica na divisa com Goiás, depois de serem acusadas de espalhar o coronavírus na cidade em que nasceram. O adeus aconteceu no dia 11 de junho. 

No dia 4 do mesmo mês, a quatro perderam a mãe, Lígia Suely Lopes, 42, que havia sido diagnosticada com covid-19. No fim de maio. morreu o avô materno, Joaquim de Oliveira, 74 anos, por conta da mesma doença. 

Foi o suficiente para que a família fosse acusada de levar o vírus para Alto Araguaia, município com 17,5 mil habitantes. “Disseram, nas redes sociais, que fomos as responsáveis por levar o vírus para a nossa cidade. Recebemos muitas críticas. Isso é muito triste”, afirma Dalylla. “Tem sido o período mais difícil das nossas vidas”.

A cidade tem 23 casos confirmados de covid-19 e três mortes. Talytta afirma que os ataques tornaram o período de luto ainda mais difícil de suportar. “Estamos vivendo à base de remédios para dormir. A nossa vida nunca vai ser a mesma. Além das perdas, precisamos lidar com a falta de empatia das pessoas. Toda hora recebemos algum comentário maldoso nas redes sociais”.

O início 

Na primeira semana de maio, Dalylla estava de folga foi a uma cidade vizinha visitar uma amiga. “Uma infelicidade muito grande”, diz a mais velha das quatro irmãs. Levou com ela o filho caçula, de nove meses. “Não era um churrasco ou uma festa. Era apenas um encontro de amigas”. 

No local havia outra mulher, que teria-lhe transmitido o vírus. “Ela era colega da minha amiga e tinha acabado de chegar do Sul do país. Ela deveria estar em quarentena, porque tinha voltado de viagem, mas estava lá”. Dalylla admite que não acreditava que poderia contrair o vírus no encontro com a amiga, já que não havia nenhum caso confirmado na região. 

“Essa conhecida brincou com o meu filho durante o encontro. Pode ser que nesse momento ela tenha passado o vírus para ele”, diz Dalylla. Dias depois, segundo Dalylla, a conhecida testou positivo para a covid-19. Foi o primeiro caso confirmado na cidade vizinha.

Dalylla e o filho começaram a apresentar sintomas da covid-19. “Tivemos febre e tosse, mas a princípio não demos importância. Passamos a desconfiar que poderia ser covid-19 quando descobrimos que a mulher que havia testado positivo na cidade vizinha era aquela que esteve junto comigo e com a minha amiga”, relata.

A mãe, os avós e a irmã do meio, Talytta, também apresentaram sintomas. A caçula, Samylla, e os dois filhos mais velhos de Dalylla não tiveram sintomas.

Os testes confirmaram que Dalylla e o caçula haviam sido infectados pelo novo coronavírus. “Desde os primeiros sintomas, ficamos em isolamento e comunicamos a todos que tivemos contato naqueles últimos dias. Como a minha mãe era da área da saúde, ela era muito preocupada com isso”, comenta Samylla.

Os principais sintomas de Dalylla foram a falta de ar e a tosse. “Eu fiquei muito mal, mas não cheguei a ser internada. Tive muito cansaço e dor de cabeça”, relembra. “Quando eu respirava, parecia que havia agulhas nos meus pulmões, porque doía muito”, diz Talytta. As duas foram tratadas em casa, com o intenso apoio da mãe.

Lígia era considerada pelas filhas como uma fortaleza. Ela era técnica de enfermagem, mas há alguns anos havia deixado a função para trabalhar em uma associação comercial de Alto Araguaia.

“A minha mãe sempre foi guerreira e muito protetora. No período da covid, ela não se deixava abater. Estava sempre ajudando a gente”, diz Talytta.

Em um áudio para uma parente, Lígia desabafou. Ela disse que dormia pouco e parecia viver um pesadelo em razão do coronavírus. No relato, contou que sentia dores por todo o corpo, mas precisava se manter forte, para não desmotivar as filhas e os pais.

O primeiro familiar a apresentar quadro grave foi o idoso Joaquim de Oliveira. Diabético, hipertenso, com problemas cardíacos e nos rins, ele teve intensa falta de ar, febre e foi levado ao hospital. Joaquim foi intubado, mas não resistiu. Ele faleceu em 26 de maio.

Lígia nunca soube da morte do pai. Ela foi internada no dia em que o idoso faleceu. Extremamente apegada a ele, os familiares optaram por contar sobre o falecimento somente quando ela melhorasse, para não prejudicar a recuperação dela. Porém, o quadro de saúde dela, que era hipertensa e tinha bronquite, se agravou cada vez mais.

“A minha mãe começou a ficar debilitada assim que meu avô piorou. Ela ficou abatida, porque sabia que meu avô não sobreviveria. Foi um choque para ela não poder fazer nada por ele”, diz Samylla.

“Ela deu a vida por nós. Não caiu em nenhum momento, enquanto a gente estava ruim”, relembra Talytta.

Um dos temores da técnica de enfermagem, durante a internação, era ser intubada. No entanto, diante da intensa falta de ar, não restou alternativa aos médicos. Lígia foi encaminhada para um hospital em Rondonópolis (MT). Em 5 de junho, ela não resistiu às consequências do coronavírus.

“Ela era muito forte. Sempre foi uma guerreira. A gente tinha certeza de que a minha mãe sobreviveria, por isso não nos despedimos dela antes da internação. Foi tudo muito triste”, emociona-se Samylla.

‘Me sinto culpada’

Ao comentar sobre as mortes do avô e da mãe, Dalylla admite que se sente culpada. “É um culpa que vou ter sempre comigo, porque eu fui à casa da minha amiga aquele dia. Me sinto culpada porque isso custou a vida do meu avô e da minha mãe. Me sinto culpada por estar viva. É uma sensação muito ruim”, relata, aos prantos.

“Eu sei que não fiz por querer. Não fui para uma festa ou para um churrasco, como vejo muitas pessoas fazendo com frequência. Mas eu não deveria ter saído aquele dia. A minha cabeça está bagunçada. Eu fiquei ruim e me recuperei. Mas o meu avô não conseguiu se recuperar. A minha mãe, que cuidou de todos nós, também não. É muito difícil”, diz Dalylla, em meio às lágrimas.

Um pedido de desculpas marcou a última conversa entre Dalylla e o avô, pouco antes de o idoso ser internado com a covid-19. “Queria que ele me perdoasse. Precisava muito do perdão dele”, comenta. “Ele me disse que eu não precisava me desculpar, porque não era culpa minha e todo mundo poderia pegar esse vírus em algum momento”, relata Dalylla.

Ela afirma que também queria pedir perdão para a mãe. “Mas não deu tempo. Ela foi levada para outra cidade. A gente pensava que ela logo melhoraria, mas nunca mais voltou”, lamenta Dalylla.

Lígia foi enterrada em caixão lacrado e com uma breve cerimônia de despedida. Durante o ato, Talytta se desesperou, se jogou no chão e pediu desculpas à mãe. “Pelo amor de Deus, me perdoa. Volta para mim, pelo amor de Deus. Me perdoa. Volta, mãe. Você é a razão do meu viver. Respira, mãe. Levanta, mãe!”, bradou a jovem, em meio aos soluços, enquanto Lígia era enterrada.

. Com informações da BBC.