Crítica

Black Mirror e o horror tecnológico

Após duas temporadas aclamadas pela crítica e profundamente perturbadoras, Black Mirror foi cancelada em 2014,…

Após duas temporadas aclamadas pela crítica e profundamente perturbadoras, Black Mirror foi cancelada em 2014, para o desespero dos fãs, até renascer na semana passada pelas mãos mágicas da Netflix com seis novos episódios.

Se você não viu as temporadas anteriores, ficará feliz em saber que cada episódio contêm uma história própria e fechada. Ou seja, se você quiser, pode ver a nova temporada e só depois assistira aos episódios anteiores.

Lançada em 2011, Black Mirror sempre usufruiu de um novo tipo de terror, o tecnológico. Ele leva o conceito de Dark Media de Eugene Thacker a outro patamar, em que a mídia não é apenas o meio para o terror, como em O Chamado, por exemplo, em que o monstro sai da televisão: ela é o próprio terror.

Brinca com a ideia: e se tudo o que Adorno e a escola de Frankfurt disse sobre a tecnologia como instrumento de dominação for real, seu verdadeiro poder, imensurável? Então nós estamos ferrados. O conceito se envolve com a ideia de que a humanidade é o Doutor Frankenstein e que a tecnologia é sua Criatura, ressentida e fora de controle.

O resultado são episódios de horror sem demônios e bruxas e que ao invés de assustar quem assiste com pulos, deixa o público remoendo suas reflexões. O objetivo maior de Black Mirror é ser profundamente perturbador, angustiante.

Dito tudo isso, acredito que a nova temporada, embora muito boa, é a primeira que deixa a peteca cair em relação às suas encarnações anteriores. Nas duas primeiras temporadas, absolutamente todos os episódios são de matar: é impossível não se sentir mal após vê-los.

A nova temporada, mais longa, testa novos caminhos e, embora seja muito boa, sofre com alguns episódios que carecem de polimento. De seus seis capítulos, dois são muito bons, dois são bons e dois são fracos. Mas vamos por partes.

Vamos começar com o melhor. Os melhores episódios são, de longe, o primeiro, “Queda Livre”, e o quarto, “San Junipero”. O primeiro, seguindo uma fórmula da série, apresenta uma sociedade completamente distópica em que as pessoas são avaliadas umas pelas outras nas redes sociais.

Essas avaliações acabam servindo para tudo, até para conseguir um emprego e uma casa melhor e mesmo para limitar a área de circulação de quem tem uma pontuação menor. Tudo isso obviamente leva a um jogo de máscaras e falsidade completamente insano.

O esquema de cores é particularmente perturbador e tudo ganha um ar muito anos 1950, fonte inicial de muitos estudos sociológicos sobre a fachada social (especialmente nas mãos do sociólogo Erving Goffman) e é assustador ver como nos aproximamos disso.

Nossa obessão com a vida alheia e a falsidade das relações e dos nossos murais nas redes sociais ganham nova luz. Qual é a liberdade em ser humano, em tirar a máscara? O episódio é dirigido Joe Wright de Desejo e Reparação e Orgulho e Preconceito.

Além de ser um ótimo episódio, também é uma ótima abertura, especialmente para quem nunca assistiu Black Mirror. “Queda Livre” dá a noção perfeita do que é esta série.

O outro grande episódio da temporada é o quarto, “San Junipero”. Emocionante e inesperado, é difícil falar sobre ele sem entregar tudo, mas vale dizer que segue um dos caminhos mais experimentais da série até agora e que é extremamente bem-sucedido nisso.

 

Ele é sutil, bem construído e levanta uma questão existencial sobre a tecnologia que é interessante sem ser alarmista ou paranoico, como geralmente é a abordagem da série em relação às novidades técnicas.

Já os episódios bons são compostos pelo quinto, “Engenharia Reversa”, e sexto, “Odiados pela Nação”. O primeiro faz uma crítica interessante sobre a guerra e a violência humana e faz um parelelo com o preconceito e o ódio. É um episódio bem inteligente, mas que peca por deixar a sutileza de lado e basicamente soletrar seus pontos de vista para a audiência.

O sexto é o mais longo da série: 1h30. “Odiados pela Nação” é um episódio policial sobre a investigação de mortes bizarras no Reino Unido. Sherlock e Watson são influências óbvias nas peles das detetives Karin e Blue. A pegada policial do futuro é interessante e dá um ar Ghost in the Shell para o capítulo. O maior pecado do episódio talvez seja exatamente ser longo demais, podendo ser melhor caso suas arestas fossem aparadas.

Agora tanto o segundo quanto o terceiro episódio são fracos – e testes para os novatos que podem acabar abandonando a série. Os dois mantêm o tom alarmista da série, mas sem entregar um conteúdo que consiga ser profundamente perturbador de uma forma legítima. O que mais desliza é o terceiro: falando sobre espionagem pela webcam, ele entrega um episódio ralo, focado em choque, que poderia ser muito melhor e mais profundo, já que este é um problema que já vivenciamos. Pelo contrário: uma reflexão legítima é trocada por uma sequência de erros cujo único objetivo é fazer o expectador soltar “oohs” e “aahs” conforme sua trama canhestra se desenrola.

Poderiam ser ótimos episódios, mas são preguiçosos: os roteiros possuem buracos, a direção é descuidada, oportunidades são desperdiçadas. Ambos falham e decepcionam, especialmente para quem já está familiarizado com a série e está acostumado com episódios bem escritos e amarrados que conseguem ser assustadores de verdade sem precisar ser óbvio.

Além dos episódios, vale destacar a diversidade: a grande maioria dos personagens protagonistas são mulheres ou negros e a série passa com muita folga no teste Bechdel. É triste dizer isso, mas foi revigorante ver seis episódios que tiveram o cuidado de ter isto em mente.

Já no elenco os destaques são todos femininos. Bryce Dallas Howard está perfeita no papel de Lacie, em “Queda Livre”, e tem tudo para ser realmente o rosto dessa nova temporada.

Os outros destaques ficam por conta de Mackenzie Davis e Gugu Mbatha-Raw, de “San Junipero”, ambas incríveis em seus papéis. E, por fim, para Kelly Macdonald, a detetive Karin de “Odiados pela Nação”. Uma das melhores atrizes do Reino Unido, a escocesa aparece pouco, mas sempre brilha em tudo que estrela.

Enfim, de modo geral, foi uma temporada muito boa, embora não consiga ser melhor que as anteriores (a primeira é todinha excelente). A temporada saiu do forno talvez um pouco crua, mas isso não prejudicou o sabor. Se você nunca assistiu Black Mirror, este é um ótimo lugar para começar; se já é um veterano, é um ótimo momento para voltar.