Crítica

Girlboss: tão desalmada quanto sua protagonista

A Netflix acaba de estrear sua nova comédia, Girlboss, uma releitura extremamente livre e leve da…

A Netflix acaba de estrear sua nova comédia, Girlboss, uma releitura extremamente livre e leve da vida real de Sophia Amoruso, jovem que construiu o império da moda Nasty Gal praticamente sozinha.

A série, inclusive, estreia mais ou menos no mesmo período em que a Sophia real e seu império caiu em chamas, soterrada por dívidas, processos por assédio e denúncias.

Se baseando na saga de uma pessoa horrível e repelente como protagonista, Girlboss precisa contornar e maquiar os defeitos da Sophia real de todas as formas possíveis para criar uma Sophia fictícia envolvente. E eles falharam. Não só neste, mas em muitos pontos.

O bom

Girlboss tem uma direção de arte e fotografias bem bacanas. A série fala sobre moda e se passa em São Francisco, portanto, ela não poderia ser feia. A maior parte das tomadas são super iluminadas e ensolaradas, combinando com as roupas vintage de sua protagonista e dando um ar anos 70 e girl power ao seriado.

A trilha sonora também é excelente. A produtora Kay Cannon optou por usar uma trilha de músicas licenciadas, assim como 13 Reasons Why, e foi uma escolha excelente. The Yeah Yeah Yeahs, Wheatus, Kaiser Chiefs, Bikini Kill, Yelle, Suzi Quatro. A trilha é recheada de clássicos e chama a atenção por ter, inclusive, diversos clássicos de movimentos feministas na música.

Já ao contrário de 13 Reasons Why, esta é uma série que não teve medo de tesourar. O formato escolhido para a comédia foram episódios de 20 e poucos minutos, como seria na televisão. Parece bobeira, mas faz toda a diferença: os episódios não se esticam para sempre, as piadas não perdem a graça, e isto contribui drasticamente para a leveza da série.

O roteiro também não é dos piores, mas não vai ganhar nenhum prêmio. Cheio de furos e piadas ruins, ele se redime em vários pontos por ter um timing afiado e por mesclar alguns elementos nonsense com jeitinho. Algumas outras pegadas e piadas conseguem se encaixar bem e arrancar risadas, mas estes momentos são raros.

Por fim, o elenco foi muito bem escolhido. Britt Robertson está incrível no papel e consegue transmitir tudo o que esperamos de Sophia: ela é engraçada e pateta ao mesmo tempo em que consegue ser mimada, intempestiva e brusca, além de entregar com tranquilidade a faceta mais sinistra e egoísta da personagem. Robertson é tão envolvente no papel que acaba sendo uma das poucas coisas boas que se destacam e que te incentivam a continuar.

Mas o resto do elenco não fica atrás. O mito das drags RuPaul faz uma ponta como regular em seis episódios e todo momento dele em cena é divertido. Ellie Reed brilha como Annie, melhor amiga de Sophia, e até Jim Rash, de Community, faz o divertido dono de brechó Mobias. O único ator verdadeiramente desperdiçado é Dean Norris que dá vida ao pai de Sophia.

Veterano de Under the Dome, como Robertson, e também de Breaking Bad, Norris já revelou várias vezes que é um ator muito mais intenso e talentoso do que aparenta ser. Em Girlboss, é possível ver claramente que o ator está sendo limitado de maneira drástica pelo papel, o que é péssimo.

O ruim

Putz. Ok. Vamos lá. Todo o resto. Girlboss possui inúmeros problemas, alguns deles fundamentais, como tom e premissa. Embora a motivação da série seja boa, ela não consegue ser forte o suficiente para carregar uma temporada nas costas. Mesmo com os episódios curtos e tom leve, simplesmente não tem enredo o bastante ali.

O resultado é que alguns episódios são quase puro filler, mesmo tendo 20 minutos de duração em uma série de 13 episódios. É tão sério isso que há grandes chances de você pular do piloto para o season finale  não perder nada de relevante nem ficar perdido na história. Simplesmente: nada acontece.

Agora o tom: é uma comédia extremamente leve que acaba parecendo uma cortina de fumaça. Digo isso porque mesmo sendo uma versão fortemente ficcionalizada, Sophia continua sendo uma pessoa horrível que faz coisas horríveis com outras pessoas.

Isto não é novidade em histórias reais de empreendedores americanos: Fome de Poder, Wall Street, A Rede Social, O Lobo de Wall Street, está tudo aí, com histórias parecidas de empreendedores que tinham muita visão e zero escrúpulos. Girlboss conta a mesma história, mas a comédia não encaixa bem: vamos tocar uma música leve e fazer uma piada enquanto eu passo essas pessoas para trás.

Talvez funcionasse se o tom da série pendesse mais para a sátira ou tivesse um humor mais sarcástico baseado em exagero: O Lobo de Wall Street funciona de maneira magnífica assim. No fim, Girlboss fica com um tom aguado que dilui tudo dentro de si.

Junto com tudo isso, vem o seguinte ponto: se a história ia se afastar tanto da Sophia real, porque não abandonar essa ideia inteiramente e fazer uma história original? Ao longo da série, o conteúdo criado pela Netflix se choca horrivelmente com os pontos reais da vida de Sophia.

Shane, seu interesse amoroso no seriado, não existiu, e na televisão é um personagem unidimensional e idealizado ao extremo. O mesmo vale para Annie: seu retrato de melhor amiga parece um sonho febril e não uma amizade verdadeira.

Portanto, seria muito melhor abandonar toda a parte levemente real da trama, jogá-la inteiramente no lixo, e seguir do zero. Seria melhor para todos: para o público, para os criadores e até para a Sophia real. Porque todo esse tom leve, mudando até o cenário de Los Angeles para São Francisco, acaba parecendo uma forma de limpar a barra e minimizar os erros da Sophia real. Enfim, você não faz uma série sequer levemente baseada na realidade se este fato for ser uma âncora e assombrar o seu programa sempre.

Outra coisa: Girlboss foi vendida como uma série feminista e empoderadora. Ela não é nenhuma das duas coisas. Estas coisas simplesmente não estão lá. Girlboss é uma série sobre uma pessoa horrível e mimada passando por cima de outras pessoas para conseguir o que ela quer. Não há nada de feminista nem de empoderado nisso.

Dito isso, a parte boa é que a série passa tanto no teste F e Bechdel com facilidade, girando, de fato, ao redor de personagens femininas e sem nenhum homem em um papel de destaque dramático (talvez com exceção de Shane, mas ele é tão irrelevante para o roteiro que poderia ser trocado por um Bonecão do Posto e daria na mesma).

Por fim, a Sophia da vida real é outro motivo para seguir o caminho original. Amoruso possui uma história terrível de erros, abuso e processos judiciais. Modificar quase inteiramente essa história e transformá-la em uma comédia leve parece quase irresponsável: é minimizar os erros da Sophia real ao transformá-los em algo passável na Sophia da ficção.

Veredito

Girlboss possui uma premissa interessante, mas uma execução desleixada. Suas conquistas são sabotadas pela sua própria fonte de inspiração e enredo fraco. O resultado é que a série acaba tão sem alma quanto Sophia e imatura na mesma medida. Francamente, há potencial, mas que seria muito melhor aproveitado ao se abandonar totalmente as amarras com a Sophia real e sua trajetória. Girlboss funcionaria muito melhor se passasse a ter uma história 100% original e um enredo mais caprichado ao invés de uma sequência de filler atrás de filler.