Crítica

Silêncio: uma reflexão profunda sobre fé

“Pai, por que me abandonaste?”. A frase de Jesus crucificado resume bem qual é o…

“Pai, por que me abandonaste?”. A frase de Jesus crucificado resume bem qual é o teor e o espírito que move Silêncio, novo filme de Martin Scorsese.

Em 1988, pouco antes de lançar o polêmico A Última Tentação de Cristo, o cineasta católico estava inquieto com o teor profundamente questionador e possivelmente herege de seu novo filme.

Para tranquilizar a sua mente, ele organizou uma sessão fechada no Vaticano, cheia de cardeais e outros altos membros do clero. Após a sessão, ele foi elogiado pelos sacerdotes e um deles lhe sugeriu: se quisesse mesmo se aprofundar em uma reflexão sobre fé, ele deveria ler o romance japonês Silêncio, de Shusaku Endō.

Scorsese acatou a sugestão e passou os próximos 28 anos tentando tirar uma adaptação cinematográfica do papel apenas para que ela fosse esnobada pelo Oscar e desse prejuízo nas bilheterias. O que é muito injusto, pois Silêncio é um filme brilhante.

A trama se passa no século XVIII e acompanha dois padres jesuítas portugueses em uma missão digna de O Coração das Trevas. Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) devem ir até o Japão encontrar o missionário Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), acusado de ter se tornado um apóstata.

Francisco e Sebastião

No início, ambos os padres são tipicamente eurocêntricos: veem sua missão como uma jornada divina para levar a fé aos selvagens japoneses. Ao mesmo tempo, o governo do Japão ilegalizou o cristianismo. Fiéis e missionários são perseguidos, torturados e assassinados caso se recusem a abrir mão da sua fé.

Logo, Sebastião e Francisco descobrem que o buraco é muito mais embaixo. É através do sofrimento deles e dos camponeses cristãos que o filme revela sua sagacidade. O silêncio do título é muito presente e profundamente questionador, especialmente quando falamos sobre religião constituída e evangelização.

O amor de Deus não é o suficiente? Os fiéis assassinados, morrem por Ele ou morrem pela igreja, feita de homens? O filme trabalha muito bem a questão de como a humanidade pode deturpar completamente a ideia de amor divino e transformá-lo em uma ferramenta não apenas de dominação, mas de sofrimento, que pouco tem a ver com amor ou com o divino.

Também há muito a ser dito sobre choque cultural e falha na comunicação. Como os próprios japoneses explicam no filme, a ideia de humildade e de santidade para eles é completamente diferente da europeia.

Vale destacar os dois personagens principais que representam duas faces muito diferentes da religião. Sebastião é a face mais humana. Pouco depois de chegar ao Japão, ele já abre exceções nos rígidos dogmas semi-medievais do catolicismo arcaico para melhor atender às necessidades dos fiéis miseráveis do interior japonês.

Ele é um pastor, verdadeiramente atendendo às suas ovelhas apesar de ser atormentado pelas próprias dúvidas. Quase prontamente recomenda aos camponeses que não precisam morrer por sua fé e que Deus os amará apesar de tudo.

Já Francisco é o oposto. O outro missionário é a face carrancuda e vingativa da igreja, carregada de comandos, punição e enxofre. Muitos são os atritos entre ele e Sebastião por boa parte do filme conforme Francisco insiste em não abrir mão da rigidez e do rigor eclesiástico na lida diária com os camponeses. Ele é orgulhoso, arrogante e fanático.

Quanto às atuações, Liam Neeson está meio no automático, mas Garfield e Driver se saem muitíssimo bem. Especialmente Garfield: seu papel como Sebastião é muito mais interessante, complexo e significativo do que o de Desmond Doss de Até o Último Homem, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator.

Tecnicamente, o filme é impecável. A fotografia, sua única indicação ao Oscar deste ano, é a que mais chama a atenção, revelando o Japão como um país belíssimo e ao mesmo tempo misterioso e perigoso.

Muito se reclamou sobre o ritmo e o tempo de duração do filme, mas acho que sua pegada lenta e suas longas duas horas e meia lhe caem bem. É um filme lento, reflexivo, beatífico até. Se acelerado, muitas das suas questões não teriam tempo para assentar nem serem digeridas pelo público.

É Scorsese em plena forma e que consegue trazer, mesmo que de maneira superficial, questões incômodas sobre fé e reflexão para a mesa desde paradoxos simples até questões geopolíticas maiores. Quem pensou que era um filme básico sobre intolerância está muito, mas muito enganado.