Crítica

The Handmaid’s Tale: a melhor série do ano

Terror. Um sentimento que tantas vezes lemos, mas raras vezes sentimos. É um sentimento descrito…

Terror.

Um sentimento que tantas vezes lemos, mas raras vezes sentimos. É um sentimento descrito por refugiados e prisioneiros de guerra, pessoas deixadas ao léu e que experimentam uma sensação profunda, no âmago do seu ser, de que foram abandonadas: por Deus, pelos homens, por todos. Uma sensação completa e absoluta de ter sido deixada para morrer.

The Handmaid’s Tale trabalha sobre como é sentir isto o tempo todo. A nova e brutal adaptação do romance O Conto da Aia de Margaret Atwood consegue ser tão visceral, importante e doloroso quanto o material original, além de visualmente instigante, ser bem escrito e dirigido, ter um elenco principal forte e, talvez a maior surpresa nisso tudo, uma trilha sonora excelente.

Em resumo, The Handmaid’s Tale é a melhor série do ano assim como é a mais triste e mais impactante. Tem sido um ano cheio de estreias impressionantes (Legion, American Gods), mas dificilmente qualquer outra série vai conseguir superar o que a Hulu e o Channel 4 fizeram com esta aqui.

Dito isso, a série possui sim alguns problemas, sendo o maior deles de que não é exatamente acessível. Ela é espinhenta, polêmica, corajosa e, acima de tudo, arriscada, o que com certeza irá afastar o grande público.

 

Elisabeth Moss como Offred (Divulgação)

A história acompanha Offred, uma Aia na República de Gilead, um regime fundamentalista cristão que tomou conta do que eram os antigos EUA. É um regime tão radical que até mesmo outras religiões cristãs foram perseguidas, eliminadas e expulsas do país, incluindo católicos e todas as mais variadas vertentes evangélicas. É um Estado centralizado e teocrático, uma versão mais radical e violenta do Irã, por exemplo, em que não há a separação entre Estado e Fé e no qual só existe a religião oficial: as leis, incluindo a Constituição, foram substituídas por livros do Velho Testamento, como Deuteronômio.

A trama se passa em um futuro próximo. Nele, a guerra civil entre Gilead e o que restou dos EUA ainda continua, mas distante. Neste futuro, descobrimos que problemas ambientais cresceram até quase sair do controle total, com áreas inteiras sendo consideradas tóxicas ou inabitáveis (chamadas de Colônias). Outro grande problema é que a maior parte da população, entre homens e mulheres, não é mais fértil, transformando bebês em um verdadeiro tesouro nacional.

Um problema que afeta até mesmo os membros do alto escalão de Gilead: os Comandantes, oficiais da Fé, do Governo e do Exército, e suas Esposas. Aí entram as Aias: são mulheres férteis que são enviadas às casas dos Comandantes para tentar lhes dar filhos. Mas elas não são bem tratadas: são como escravas, mulheres que o regime considerou impuras, mas que poupou por serem férteis. Desta forma, elas funcionam quase como úteros com pernas e nada mais. Offred é uma delas tentando apenas ficar viva para quem sabe, um dia, reencontrar a sua filha criança após serem separadas pelo governo.

O bom

O primeiro ponto que deve ser destacado é seu elenco. Elisabeth Moss lidera como Offred e se prova novamente como uma das melhores atrizes dramáticas da TV americana na atualidade. Todos os prêmios que ela não ganhou como Peggy em Mad Men provavelmente serão facilmente conquistados como Offred.

O resto não fica atrás: Samira Wiley (Orange is the New Black) e Alexis Bledel (Gilmore Girls) fazem a sua parte como outras aias, especialmente Bledel que parece estar determinada a ser reconhecida por seus novos papéis e deixar Rory Gilmore no passado. Já Ann Dowd é uma força da natureza como a temível Tia Lydia e Yvonne Strahovski prova que não é apenas um rostinho bonito como era em Chuck e entrega uma performance dramática incrível como Serena Joy, a esposa do Comandante.

Como esperado, o seriado possui um elenco masculino curto, com apenas três personagens importantes e apenas um ator que rouba a cena. O veterano Joseph Fiennes dá vida ao Comandante Fred Waterford e está excelente no papel, conseguindo se equilibrar bem entre os tons de cara comum, fanático religioso e vilão temível. O seriado se esforça muito para mostrar que todos neste mundo, incluindo os vilões, são gente, pessoas com sentimentos e vontades.

Fiennes como Waterford

Fora isso, tecnicamente a série é impecável e precisamente melancólica. Os tons são geralmente frios e escuros, as tomadas sempre destacam uma certa opressão. É tudo muito bem filmado e montado, quase como um videoclipe. Uma surpresa foi a trilha sonora, tanto licenciada quanto original. Só pra dar uma ideia, apenas o piloto possui como licenciadas You Don’t Own Me e Wildfire, ambas canções que tem tudo a ver com o episódio. É tudo escolhido à dedo.

Mas, naturalmente, os dois pontos mais fortes desta primeira temporada é seu tema e seu enredo. Os episódios acompanham os dramas diários de Offred na casa dos Waterford e aproveita para contar mais sobre sua protagonista, Gilead e seu passado. Acaba que a série consegue ser tão brutal quanto o romance e mescla diversos temas polêmicos, uns mais óbvios do que outros, como ditaduras, fanatismo, xenofobia e homofobia, misoginia, estupro, etc etc etc. É difícil se aprofundar nestes assuntos sem entregar muito da série, mas The Handmaid’s Tale lida com diversos problemas com maestria.

Alexis Bledel: tentando deixar Rory Gilmore para trás

O mau

Seguindo nos passos de The Man in the High Castle, da Amazon, a série também é baseada em um livro curto com pouco mais de 300 páginas. Isso significa que o seriado sai quase imediatamente para fora do conteúdo original, o que pode ou não ser um problema. No caso de The Handmaid’s Tale, não foi um problema para mim, mas pode ser para outras pessoas conforme o seriado muda e expande o cânone de Atwood.

O principal ponto que pode ser problemático é que a série precisa dar continuidade aos acontecimentos, talvez se arriscando a ficar mais otimista que o livro que é propositalmente cheio de ambiguidades e amarras soltas. Pra mim não foi um problema porque todo o conteúdo adicional já apresentado me pareceu muito interessante, especialmente conforme a série se aproxima do final da temporada.

Seu outro principal problema, como mencionado, é não ser exatamente um programa familiar e que com certeza vai afastar muita gente, especialmente o público mais religioso ou conservador. Fora isso, é uma série muito triste e chocante, então ela pode sim facilmente abalar sua audiência ou ser gatilho para algumas pessoas. Outros ainda podem achar a mão da série muito pesada, hiperbólica em suas desgraças. Portanto, é recomendado testar as águas antes de se deixar mergulhar por este drama.

Yvonne Strahovski como Serena Joy

O veredito

Como dito anteriormente, The Handmaid’s Tale é, fácil fácil, a melhor série do ano. Não é à toa que, até agora, ela continua com 100% no Rotten Tomatoes. Ela é pesada, relevante e intensa e merece ser assistida.

Claro, não é pra todo mundo e ela pode esbarrar em alguns obstáculos em certos pontos, mas é bom ver algo tão desafiador dar a cara à tapa no atual cenário televisivo.