CORONAVÍRUS

Cidades se reinventam para enfrentar o mundo pós-pandemia

Calçadas mais largas, pedestres dividindo a pista com veículos e mais alguns quilômetros de ciclovias…

Em Goiás, feiras livres agora funcionam em formato adaptado. Foto: Prefeitura de Goiânia.
Feira livre em Goiânia (Foto: Prefeitura de Goiânia).

Calçadas mais largas, pedestres dividindo a pista com veículos e mais alguns quilômetros de ciclovias pelo espaço urbano. Por causa do novo coronavírus, as cidades tiveram que se adaptar para oferecer mais segurança à população e garantir o distanciamento seguro em tempos de pandemia. Ao redor do mundo diversos países adotaram medidas distintas nas diferentes fases do surto da doença, e algumas delas — bem simples e de baixo custo — podem inclusive ser incorporadas de forma permanente à paisagem urbana.

Porém, as novas estratégias precisam vir acompanhadas de um planejamento urbano anterior, conforme explicam especialistas. Este é o caso no Brasil e em outros países da América Latina, que, mesmo implementando tais medidas, devem sanar problemas habitacionais e de gestão para tornar suas cidades mais seguras diante de surtos sanitários.

Bicicletas como trunfo

Na Colômbia, a capital Bogotá, que já contava com 550 km de ciclovia, ampliou sua malha cicloviária em mais 80 km assim que decretou a quarentena na cidade, no final de março. As pistas que foram criadas para serem temporárias agora serão permanentes, segundo afirmou a prefeitura. Durante o isolamento, de acordo com a Secretaria de Mobilidade de Bogotá, cerca de 300 mil viagens foram feitas de bicicletas, sendo usadas principalmente por trabalhadores de serviços essenciais. A pasta afirmou ainda que 70% das pessoas que agora usam o veículo regularmente costumavam circular pela cidade em outros tipos de transporte, antes da pandemia.

Segundo um estudo feito pela Associação Nacional de Oficiais de Transporte da Cidade (Nacto, na sigla em inglês), financiado pela Bloomberg Philanthropies, o incentivo ao uso de bicicletas como meio de locomoção diário foi uma das medidas mais adotadas pelas cidades na hora de se adaptar por causa do coronavírus — por ser um transporte individual, as chances de contágio diminuem. O relatório também cita outras estratégias usadas para trazer mais segurança à população contra uma nova onda de contaminações da Covid-19.

“As faixas exclusivas para o transporte coletivo serão essenciais para garantir que os ônibus possam circular livremente e com mais frequência, permitindo que as pessoas os utilizem sem medo de superlotação. Calçadas ampliadas, estratégias de gerenciamento de velocidade e redes de ciclovias protegidas serão necessárias para manter as pessoas seguras quando o tráfego de veículos retornar. Lojas, mercados e restaurantes precisarão de espaço ao ar livre para assentos e filas, a fim de se manterem financeiramente sustentáveis. Escolas, bibliotecas, locais e instituições religiosas e culturais podem precisar de espaço ao ar livre para conduzir com segurança as aulas e a programação, ou fornecer serviços sociais essenciais”, diz o documento.

O estudo da Nacto explica que, para a adoção dessas medidas, é possível usar recursos de baixo custo e de fácil instalação, como barreiras, balizas, meio-fio de borracha e até marcações feitas com tinta. Foi o que fez Buenos Aires, na Argentina, que pintou o chão e colocou cones em pontos de ônibus e outros lugares públicos para indicar o espaçamento apropriado que as pessoas deveriam manter. Auckland, na Nova Zelândia, também usou os mesmos recursos para ampliar a calçada da principal via comercial do centro da capital neozelandesa, a Queen Street.

— Os exemplos que vemos foram feitos com um custo baixo e tiveram um impacto grande. Cada cidade tem o seu contexto e as suas características. Mas elas não precisam reinventar a roda para fazer essas mudanças. Os países do mundo todo estão mudando, as cidades podem se inspirar nos demais exemplos e adaptá-los para a sua realidade — explica o urbanista italiano Fabrizio Prati, um dos autores do estudo.

O especialista alerta que sem adaptações por causa do coronavírus as cidades correm o risco, além de um aumento dos casos da doença, de ficarem paralisadas por causa do aumento intenso do fluxo de veículos particulares na rua, devido ao receio dos transportes coletivos. Segundo ele, esse congestionamento também seria causado pelo crescimento insustentável que as cidades tiveram até então.

— O que o futuro vai ser, ainda não sabemos. O que sabemos é que devemos repensar as nossas cidades. Há tempos temos um crescimento que não é feito de forma segura nem sustentável. Algumas cidades já tinham atingido um limite de carros na rua, então qualquer aumento pode causar um engarrafamento que a paralisaria, além de trazer mais poluição — explica o urbanista.

Impacto a longo prazo

Prati cita o exemplo do uso de bicicletas, que ajudaria a aliviar os nós na cidade causados pelos carros, além de garantir mais segurança a quem usa ou não o transporte:

— Isso não significa que todo mundo vai ter que ir trabalhar de bicicleta. Mas aqueles que têm essa opção poderão adotá-la e isso aliviaria a quantidade de pessoas nos transportes públicos.

Tais mudanças também seriam uma forma de aliviar o fluxo de circulação nas cidades e diminuiria a poluição no território. Isso faria com que, se adotadas de forma permanente, as medidas tivessem um impacto positivo a médio e longo prazo.

No Brasil, algumas ações do tipo estão sendo implementadas. A Tembici, responsável pelo serviço de aluguel de bicicletas em cidades como Rio, São Paulo, Recife e Porto Alegre, informou que está investindo no aumento da sua frota. Segundo um levantamento da empresa, 87% dos usuários do serviço optaram pelo transporte como prevenção ao novo coronavírus, e 54% estavam utilizando as bicicletas para ir e voltar do trabalho — 16% eram profissionais da área da saúde.

Já em Goiás, o estado achou uma solução para voltar com as feiras e mercados de hortifrutigranjeiros ao ar livre, desde que as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) fossem seguidas. Para isso, faixas e fitas de marcação passaram a ser usadas para indicar o distanciamento seguro entre os clientes e limitando em ao menos um metro a distância das pessoas e dos alimentos. Ainda foi preciso que os espaços disponibilizassem um lugar para lavar as mãos, com água limpa e corrente, sabão líquido e papel descartável, além de álcool gel a 70%. Os comerciantes também puderam começar a atender em esquema de delivery e drive-thru, que está sendo adotado em todos os municípios do estado.

— Começamos a buscar soluções para amenizar o impacto econômico, sem perder de vista a questão sanitária. Consolidamos um trabalho técnico com uma referência baseada nos principais contextos da OMS — conta o secretário de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Goiás, Antônio Carlos de Souza Lima Neto.

Necessidade de diálogo

O oficial sênior de Assentamentos Humanos do Escritório Regional para América Latina e o Caribe (ROLAC), da ONU-Habitat, o canadense Alain Grimard, considera que essas medidas são soluções construtivas, criativas e que devem ser aplicadas de forma permanente nas cidades. Porém, ele pondera que há desafios para implementá-las, principalmente em países do continente, como Brasil, México e Colômbia, pela falta de atuação conjunta entre os diferentes níveis de governo.

— O desafio de vários países da região é a dificuldade de ter uma sinergia entre os distintos níveis de governo; nacional, estadual ou provincial e municipal. Para organizar uma resposta positiva e efetiva é preciso ter um diálogo entre eles — explica Grimard. — Também é preciso pensar a nível metropolitano, já que temos em vários países da América Latina o fenômeno de conurbação, onde dezenas de cidades existem coladas umas nas outras. Como acabam fazendo parte da mesma zona, não existe uma fronteira administrativa e há muita circulação entre elas. Quando falamos de diálogo, de cooperação, temos que assegurar que essa resposta [ao coronavírus] seja aplicável em toda a região metropolitana.