LUTO

Morre o ex-presidente do Uruguai Tabaré Vázquez, aos 80 anos

Morreu neste domingo Tabaré Vázquez, o primeiro político de esquerda a ocupar a Presidência do…

Morre o ex-presidente do Uruguai Tabaré Vázquez, aos 80 anos
Morre o ex-presidente do Uruguai Tabaré Vázquez, aos 80 anos

Morreu neste domingo Tabaré Vázquez, o primeiro político de esquerda a ocupar a Presidência do Uruguai, aos 80 anos. A morte de Vázquez, que concluiu seu segundo mandato à frente da nação sul-americana há apenas nove meses, foi anunciada pela família e pela coligação que o elegeu, a Frente Ampla. O político lutava contra um câncer de pulmão.

“Com profunda dor, comunicamos o falecimento de nosso amado pai” às três da manhã “por causas naturais de sua doença oncológica”, informou em um comunicado seus filhos Álvaro, Javier e Ignacio Vázquez.

No Twitter, Álvaro Vázquez escreveu que “enquanto descansava em casa, acompanhado por alguns familiares e amigos, por causa de sua doença, Tabaré faleceu”. “Em nome da família, queremos agradecer a todos os uruguaios pelo carinho recebido por ele ao longo de tantos anos”, acrescentou.

O político, oncologista e ex-dirigente do clube de futebol local Progreso, foi o primeiro candidato da coalizão de esquerda Frente Ampla a se tornar prefeito de Montevidéu em 1989, e chegar à Presidência em 2005, quebrando com a hegemonia dos tradicionais Partido Colorado e do Partido Nacional.

“Nunca na minha vida pensei em fazer política. Desde guri na escola gostava de biologia e medicina. Jamais pensei, nem sonhei na mais louca das fantasias, que poderia ser prefeito ou deputado. Não me interessava”, escreveu no livro “Conversas com Tabaré Vázquez”, de 2003.

Vázquez comandou o Uruguai em duas oportunidades: na primeira, entre 2005 e 2010, quando foi sucedido pelo correligionário José Mujica, e, mais recentemente, entre 2015 e 2020. No último pleito em que concorreu, em 2014, derrotou o atual presidente, o direitista Luiz Lacalle Pou. O atual dirigente se manifestou pelo Twitter nesta manhã.

“Enfrentou com coragem e serenidade sua última batalha. Tivemos momentos de diálogo pessoal e político que valorizo e me lembrarei sempre. Serviu ao país e, com base no seu esforço, obteve vitórias importantes. Foi o presidente dos uruguaios. O país está de luto. Descanse em paz, Presidente Tabaré Vázquez”, escreveu Lacalle Pou na rede social.

Tabaré Ramón Vázquez Rosas nasceu em Montevidéu, em 17 de janeiro de 1940, em uma família pobre. Seu pai era funcionário da Ancap, estatal uruguaia do petróleo. O ex-presidente cresceu no bairro La Teja e a vivência humilde guiaria sua escolha profissional e a eventual militância que assumiria na política.

— Venho de uma casa muito humilde e pude estudar, em escola pública, ensino médio público. Sou um produto disso tudo e me sinto profundamente grato e comprometido com a sociedade uruguaia — disse em entrevista ao Canal VTV.

Vázquez trabalhou como carpinteiro, escriturário e garçom para pagar seus estudos de medicina. Formado em 1969, dedicou sua carreira à oncologia depois de perder sua irmã, mãe e pai por câncer entre 1962 e 1968.

A primeira vitória presidencial de Vázquez após duas tentativas frustradas, em 2004, foi simbólica por se dar já no primeiro turno e por representar o primeiro êxito eleitoral da esquerda uruguaia em uma disputa para presidente desde o fim da ditadura militar, em 1985. Deu-se início a um longo ciclo da legenda, que comandaria o país por 15 anos.

Neste período, a coalizão implementou uma série de políticas que marcaram época, como a legalização do aborto até as 12 semanas de gestação, a aprovação do casamento LGBT e a liberação do uso recreativo da maconha, bem como o comércio da erva. O índice de pobreza caiu de 30% para 8%.

Sua luta contra o tabagismo trouxe fama mundial. O político promoveu a campanha que fez do Uruguai o primeiro país livre de fumo da América Latina em 2006, e o quinto do mundo, ao proibir o fumo em espaços públicos fechados.

Vázquez aumentou sistematicamente os impostos sobre o tabaco, entre outras medidas, e teve um difícil confronto com a multinacional Philip Morris, que iniciou um processo de arbitragem contra o Uruguai perante o ICSID, o órgão de solução de controvérsias comerciais do Banco Mundial em Washington, em 2010. O Uruguai venceu o processo em 2016, com Vázquez novamente na presidência.

Como a reeleição consecutiva não é permitida no Uruguai, Vázquez foi substituído pelo ex-guerrilheiro José Mujica, que venceu a disputa contra o pai de Lacalle Pou, Luiz Alberto Lacalle.

No seu último mandato, enfrentou desgastes em diferentes áreas, incluindo a segurança pública. Além disso, os índices econômicos tímidos e a crescente dívida uruguaia pesaram na disputa presidencial de 2019. Mas, mesmo sob o escrutínio de três governos subsequentes, a margem de derrota da Frente Ampla, representada pela candidatura do ex-ministro Daniel Martínez, foi apertada: a diferença foi de menos de 40 mil votos.

Vázquez também enfrentou momentos difíceis na política. O mais recente envolveu seu vice-presidente e companheiro de chapa na eleição para seu segundo mandato, Raúl Sendic, que apresentou um título acadêmico falso e não apresentou justificativas para o uso de cartões corporativos para despesas pessoais. Processado por abuso de função e peculato, Sendic renunciou em 2017 e foi substituído por Lucia Topolansky, senadora e esposa do ex-presidente José Mujica.

O governo Vázquez manteve uma relação tensa com a oposição no Parlamento, com maioria pró-governamental, devido à sua postura de defesa e reconhecimento do regime de Nicolás Maduro na Venezuela, promovido pela Frente Ampla.

Durante seu primeiro mandato, Vázquez entrou em confronto com seu próprio partido ao vetar uma lei que legalizava o aborto. Em 2011, fora da presidência, ele confessou que cogitou um confronto bélico com a Argentina devido a uma disputa em torno de uma fábrica de celulose na divisa entre os dois países, para a qual pediu apoio aos Estados Unidos.

Diante das críticas da Argentina e de seu próprio partido, Vázquez pediu desculpas ao país vizinho e anunciou sua aposentadoria política. No entanto, após um esforço de articulação dentro da Frente Ampla, voltou à liderança da coalizão com a saída de Mujica do poder, vencendo a disputa eleitoral de 2014.

Nos últimos dias de vida, o ex-presidente, ainda ativo politicamente, se reuniu com Mujica e Lucia Topolansky para discutir temas ligados à Frente Ampla.

A última entrevista do político uruguaio foi veiculada pelo programa El Legado, da emissora uruguaia Canal 10, no dia 29 de novembro. Na gravação, o ex-presidente contou mais uma vez que entrar na política não estava nos seus planos e falou sobre seu legado.

— Nunca aspirei seguir uma carreira política. Minha área era a medicina, voltado para questões sociais — disse Vázquez. — Quero ser lembrado como um presidente sério e responsável.

Vázquez foi diagnosticado com câncer de pulmão em 2019, ano em que também perdeu a esposa, Maria Auxiliadora Delgado, vítima de um infarto aos 82 anos. Segundo a imprensa uruguaia, seu quadro se agravou nas últimas semanas, quando foi constatada uma metástase — afetando ainda o pâncreas. O ex-presidente teria optado por não ser internado e passar seus últimos dias com a família, em sua casa.

Em um comunicado, parentes informaram que, em razão da pandemia da Covid-19, não haverá velório público e o enterro será restrito à família e à imprensa. Será realizado, no entanto, um cortejo pelas ruas de Montevidéu. A Frente Ampla convocou militantes a se despedirem de Vázquez e prestarem homenagens ao ex-presidente.

A prefeita de Montevidéu, Carolina Cosse, integrante da Frente Ampla, lamentou a morte de Vázquez e declarou luto. Por meio de um comunicado entitulado “Companheiro de alma, companheiro”, a prefeitura ressaltou que, à frente do Uruguai, Vázquez “foi um grande estadista responsável de algumas das políticas sociais, econômicas, educativas e produtivas mais significativas do Uruguai’.

Reações internacionais

Governos e políticos tanto de direita quanto de esquerda lamentaram a morte do uruguaio.

Em nota, o governo brasileiro diz que recebeu com grande pesar a notícia da morte de Tabaré Vázquez: “O governo brasileiro transmite ao povo-irmão do Uruguai e aos familiares do ex-presidente as suas profundas condolências”.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que conviveu com o político uruguaio durante boa parte de seu mandato, afirmou por meio de nota que Vázquez deixa um legado ” de democracia, desenvolvimento e avanços sociais” no Uruguai. “Hoje perdi um amigo querido meu e do Brasil. Minha solidariedade e sentimentos aos familiares, amigos e ao povo uruguaio, que preservará a memória e o legado de Tabaré Vázquez”, disse Lula.

Na Argentina, adversários políticos, como o presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, e o ex-presidente Mauricio Macri, lamentaram a morte de Tabaré Vázquez. “Me causa enorme dor o falecimento do meu querido Tabaré Vázquez. Fiel às suas convicções, permitiu que o progressismo chegasse ao governo do Uruguai”, afirmou Fernández. Cristina Kirchner, que também presidiu a Argentina e cujo marido e ex-presidente argentino, Néstor Kirchner, também faleceu por conta de um câncer, enalteceu a figura do ex-colega uruguaio: “Sua chegada à Presidência ajudou a consolidar o ideal de Pátria Grande”.

Macri, por sua vez, lembrou do relacionamento entre os dois no poder e comentou: “Se foi um cavalheiro da política, um dirigente honesto com sentido comum que fortaleceu os laços com a Argentina e o Mercosul”.

O primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, sublinhou o legado social dos governos Vázquez. “Comprometido com seu país, [Vázquez] governou com e para a cidadania. Sua gestão deixa para o Uruguai um enorme legado de direitos e políticas sociais”, afirmou o premier espanhol por meio de um comunicado.

O presidente da Bolívia, Luis Arce, ofereceu conforto ao povo do Uruguai e à família de Vázquez e prestou uma homenagem a Tabaré. “Recordaremos seu legado e sua vocação pela integração na região”, escreveu Arce. O ex-presidente boliviano Evo Morales também ofereceu condolências e lembrou que Vázquez “sempre apoiou o processo democrático na Bolívia e condenou o golpe de Estado”, em referência à crise institucional que levou à renúncia de Morales em 2019 e a uma onda de violência contra partidários de sua legenda, o MAS, no país.

“Se foi um querido irmão e mestre, um ser humano profundamente bom”, escreveu no Twitter o ex-presidente do Equador Rafael Correa, também contemporâneo de Vázquez.