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Beneficiários do Bolsa Família e BPC são proibidos de apostar nas bets

Plataformas de jogos online não pode mais aceitar novos cadastros nem novos acessos de quem recebe benefícios sociais

Homem com óculos e a mão no rosto. Ele segura um celular e tem expressão preocupada.
Nova regra federal impede acesso às bets a beneficiários de programas sociais. (Foto: Freepik)

Uma nova norma federal acaba de colocar um ponto final na possibilidade de beneficiários do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) se cadastrarem ou continuarem utilizando as plataformas de apostas esportivas de quota fixa, popularmente conhecidas como bets. A Instrução Normativa publicada nesta quarta-feira (1), no Diário Oficial, obriga as empresas a barrarem qualquer CPF vinculado a esses programas sociais, sob pena de sanções.

A justificativa oficial é proteger financeiramente um público mais vulnerável, evitando o endividamento. Por outro lado, é uma medida de intervenção governamental nas escolhas dos cidadãos e atinge milhões de brasileiros. 

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Impacto das bets além do bolso e do diploma

A decisão do governo é uma resposta direta aos dados revelados pela CPI das Bets – ocorrida entre maio e setembro do ano passado – e pelo Banco Central. Relatórios apresentados ao longo de 2024 apontaram que cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família teriam movimentado até R$ 3 bilhões em apostas em apenas um mês, boa parte por meio de transferências via Pix. Os dados acenderam o alerta sobre o uso do benefício para práticas de risco financeiro, e reforçaram a ameaça de que esse público estaria sendo capturado pelas promessas de lucro fácil das plataformas. 

Quem aposta hoje?

Dados atualizados de 2025 mostram que o perfil do apostador brasileiro está cada vez mais associado a um cenário de vulnerabilidade econômica. A maioria dos jogadores pertence às classes C e D, com renda familiar entre R$ 3 mil e R$ 6 mil, e muitos estão endividados ou com dificuldades de planejamento financeiro. Segundo levantamento do Banco Central, mais de 60% dos apostadores têm algum nível de inadimplência ou atrasos em contas básicas. Essa combinação de baixa renda e alto endividamento cria um ambiente propício para que apostas sejam vistas como uma saída ilusória para dificuldades financeiras.

Além disso, o relatório da Paag indica que parte expressiva dos jogadores aposta de forma recorrente, mesmo com valores baixos. O ciclo de aposta muitas vezes se intensifica no fim do mês, período em que o orçamento já está comprometido. Essa lógica reforça o uso das “bets” como uma espécie de respiro financeiro, mesmo que arriscado. O comportamento é amplificado por campanhas de marketing agressivas e pela promessa de ganhos rápidos, que ressoam especialmente entre jovens adultos e chefes de família com orçamento apertado.

Dados do 1º Relatório Trimestral da Paag, divulgados neste ano, mostram que mais de 90% das apostas registradas no Brasil foram de valores inferiores a R$ 100. O ticket médio mensal é de R$ 61,52. Ou seja, o volume financeiro pode parecer pequeno, mas a frequência revela uma prática consolidada, especialmente entre as classes C e D. Não por acaso, é também entre esses extratos que se concentra a base do Bolsa Família.

Outro dado relevante vem da pesquisa da Unifesp sobre comportamentos de risco: entre adolescentes de 14 a 17 anos que apostam, mais da metade (55,2%) o fazem em plataformas esportivas. Já o levantamento nacional da série LENAD estima que mais de 10,9 milhões de brasileiros estão em situação de jogo problemático — um padrão de comportamento em que a prática de apostas causa prejuízos à vida pessoal, familiar, profissional ou financeira, mesmo diante de perdas recorrentes — número que cresce ano após ano, especialmente entre jovens de regiões periféricas.

Esses dados desmontam qualquer visão romantizada de que a aposta é mero entretenimento. Para muitos, é encarada como possibilidade de ganho, ainda que mínima, em meio a um cotidiano de escassez. A recorrência das apostas entre os mais jovens, inclusive, aponta para a construção de um hábito que se forma na adolescência e se estende pela vida adulta, criando ciclos de dependência muitas vezes silenciosos.

Quem será excluído?

Com a nova regra, quem recebe o Bolsa Família ou o BPC terá sua conta nas plataformas de apostas encerrada automaticamente ao tentar login. Os recursos deverão ser devolvidos ou, se não resgatados em até dois dias, enviados ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) ou ao Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap) após 180 dias. A consulta será feita pelo CPF via um Sistema de Gestão de Apostas (SIGAP), plataforma digital criada pelo governo federal que centraliza dados, garante rastreabilidade das operações e é a principal ferramenta para aplicar as normas da Secretaria de Prêmios e Apostas. A identificação com o rótulo “Impedido – Programa Social” será suficiente para a exclusão da plataforma.

Atualmente, o programa Bolsa Família atende a cerca de 50 milhões de brasileiros com renda familiar por pessoa de até R$ 218. Já o BPC, é um benefício de um salário-mínimo pago a cerca de 6 milhões de idosos com 65 anos ou mais e pessoas com deficiência de baixa renda. 

Uma onda de restrições e novas regras

A nova regra faz parte de uma série de mudanças promovidas pelo governo federal ao longo de 2025. Ainda no início do ano, outra normativa estabeleceu diretrizes para o funcionamento legal das operadoras, exigindo transparência e o cumprimento de obrigações fiscais. Em abril, o Ministério da Fazenda ampliou o escopo de fiscalização ao proibir o acesso de menores de idade às plataformas, uma tentativa de reduzir o aliciamento de jovens em ambiente digital.

Paralelamente, o Senado aprovou um projeto de lei que restringe a publicidade das bets, especialmente aquela que utiliza influenciadores, atletas ou celebridades para atrair apostadores. A proposta está sendo avaliada na Câmara dos Deputados. A ideia é limitar o alcance do marketing agressivo que domina transmissões esportivas e redes sociais. Já a Receita Federal passou a exigir que os ganhos obtidos com apostas online sejam tributados na fonte, sinalizando que o setor, até então considerado zona cinzenta, será cada vez mais alvo da fiscalização fiscal e regulatória.

Essas medidas mostram que há um esforço mais amplo por parte do governo para estruturar esse mercado. No entanto, quando esse movimento regulatório se volta de forma incisiva apenas para o comportamento de quem joga — e não para as lógicas de funcionamento das plataformas — o risco é de criminalizar a pobreza em vez de controlar os abusos da indústria.

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