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Empreender exige reinvenção constante
Dados do Sebrae e histórias de pequenos negócios em Goiás revelam que a rotina de quem empreende é feita de ajustes, aprendizados e novas versões de si mesmo
Enquanto o mundo dos negócios fala sobre inovação tecnológica e inteligência artificial, boa parte de quem empreende vivencia outro tipo de reinvenção: conectar o serviço oferecido com a própria realidade e autenticidade usando a criatividade e a coragem. Duas histórias de empreendedores goianos ilustram bem essa forma mais factível de quem trabalha por conta própria.
De um lado, a artesã que transformou a dor em sustento; de outro, o casal que fez da disciplina o caminho para a liberdade. Eles fazem parte dos 897 mil pequenos negócios de Goiás, o que representa 4% do total nacional. Nove em cada dez empresas no Estado são de pequeno porte, responsáveis por 38% do PIB e 67% dos empregos formais.
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Os dados são do Panorama dos Pequenos Negócios 2025, elaborado pelo Sebrae, que ainda aponta que mais da metade desses negócios são de microempreendedores individuais (MEIs), que começaram sozinhos, com pouca estrutura e muita vontade. O setor de serviços concentra metade dos negócios, seguido do comércio (31%) e da indústria (10%).
O que mais chama atenção é o perfil feminino que cresce e sustenta a base dessa economia: 371 mil mulheres empreendem em Goiás, segundo o Laboratório de Pesquisas em Empreendedorismo e Inovação (LAPEI/UFG). Elas têm, em média, 42 anos e renda mensal de R$ 2,5 mil — faixa etária e realidade que refletem histórias como a de Juliana Bragança, artesã de Itumbiara, de 39 anos, e Lívia Rocha, empresária de turismo, de 43 anos.
Recomeço em papel e cor
Juliana trabalhou por anos como técnica de enfermagem até que uma depressão a afastou da rotina. “A depressão me paralisou, mas o artesanato me salvou”, diz, lembrando do presente que mudou tudo: uma máquina de corte de papel que ganhou da mãe.
O que começou como distração há cinco anos virou um novo capítulo de vida. Entre papéis, fitas e moldes, Juliana descobriu a alegria de criar. Aos poucos, as encomendas cresceram e o que era passatempo virou negócio. “Eu queria ver meu trabalho como empresa, não só como hobby”, conta a artesã.
Formalizou-se como MEI, aprendeu a precificar, fez cursos on-line e criou uma planilha simples para controlar entradas e saídas. “No começo não era nada organizado. Hoje separo uma parte para repor estoque, investir e pagar o MEI. Ainda é simples, mas funciona”, comenta.
A rotina ainda é solitária: ela produz, atende, entrega, fotografa e cuida das redes sociais. Tudo isso equilibrando suas demandas como mãe de um casal de filhos, esposa e dona de casa. Mas Juliana aprendeu a usar a tecnologia a seu favor. “As fotos com IA ficam mais bonitas, chamam atenção. E vendem mais”, conta. Hoje, ela vende pelo Instagram e pela Shopee, e o digital virou vitrine e ponte para o interior. “Já vendi para quase todas as cidades de Goiás. E olha que formalizei o MEI faz só seis meses.”
Ela faz parte de uma geração que viu o empreendedorismo se tornar ferramenta de sobrevivência e de expressão. Entretanto, a artesã entende que é necessário profissionalizar sua maneira de captar, se relacionar com as clientes e vender.
Desafios de quem cria do zero
De acordo com a pesquisa Pulso dos Pequenos Negócios, também do Sebrae, 35% dos empreendedores goianos apontam o aumento de custos como principal desafio, 25% citam a falta de clientes e 22% têm dificuldades com dívidas e empréstimos.
Outros desafios se repetem: falta de capacitação em gestão, burocracia e o equilíbrio entre vida pessoal e profissional – como Juliana percebeu logo no dia a dia do seu negócio. Ainda assim, 74% dos empreendedores de Goiás utilizam redes sociais, aplicativos ou internet para vendas, mostrando que, mesmo em meio a obstáculos, o movimento de adaptação é constante.
Essa capacidade de se ajustar e criar novas soluções diante da dificuldade é o que o empreendedor Murilo Gun chama de verdadeira criatividade e que apresentou na palestra ministrada no fechamento da Feira do Empreendedor, no último fim de semana, em Goiânia. Para ele, empreender é se relacionar com o desconhecido. “Não dá pra inventar o novo se a mente está cheia de versões antigas de si mesmo”, diz.
Murilo defende que a inovação nasce quando há espaço interno para o novo, quando a rotina desacelera o bastante para permitir a percepção. “Vivemos num excesso de estímulos, mas é quando acalmamos que conseguimos enxergar o que está além do óbvio.”
Juliana parece ter feito isso de forma intuitiva. Ao transformar a dor em criação, ela deu forma prática ao conceito de reinvenção. “Empreender é solitário, mas é libertador. A palavra-chave é perseverança. E estudar sempre. Tem tanto curso gratuito por aí… É só correr atrás.”
Propósito como bússola
No outro extremo da jornada empreendedora está Lívia Rocha, que junto com o marido, Ricardo, comanda a agência Apoio Internacional, com sede em Aparecida de Goiânia. A empresa nasceu na Irlanda, ainda nos anos 2000, quando o casal percebeu que muitos brasileiros enfrentavam dificuldades para planejar intercâmbios e viagens sem suporte adequado.
“Começamos lá fora e depois trouxemos o negócio para o Brasil, em 2008. Eu cuidava da operação daqui e o Ricardo de lá. Crescemos aos poucos, sempre com os pés no chão”, conta Lívia.
Os dois representam o outro lado da mesma moeda: o empreendedorismo com estrutura, planejamento e propósito. Eles vivem de pró-labore, separam finanças pessoais e empresariais e mantêm um sistema de gestão detalhado. “Temos planilha de tudo, acompanhamos receitas, despesas e ponto de equilíbrio. Antes da pandemia, já tínhamos quitado casa e carro. Isso nos deu tranquilidade para enfrentar o que veio depois”, explicam.
Aos 43 anos, Lívia e o esposo defendem um estilo de vida simples. “A pressa de crescer é inimiga da sustentabilidade”, costuma dizer. A casa tem horta, compostagem e energia solar. “O importante é ter liberdade e não viver correndo atrás de metas inalcançáveis.”
A pandemia testou a resiliência da agência, mas também abriu espaço para novos formatos. O público mudou: planeja mais, quer experiências fora do roteiro tradicional e valoriza atendimento humano. “Atendemos muita gente que prefere conversar no WhatsApp, sem exposição nas redes. Nosso diferencial é a confiança”, explicou Ricardo, que tem 47 anos.
A empresa hoje usa ferramentas de inteligência artificial para revisar roteiros e agilizar orçamentos, mas sem perder o toque pessoal. Para Ricardo, a tecnologia é aliada, não substituta. “IA ajuda, mas criatividade e empatia continuam sendo humanas”, argumenta.
Criar é reinventar-se
Quando pensam em inovação, muitos lembram de tecnologia, robôs e inteligência artificial. Mas, como costuma dizer Murilo Gun, a criatividade não nasce de algoritmos, e sim de presença. Ele defende que inovar é aprender a lidar com o desconhecido, é criar a partir do que ainda não existe dentro e fora da gente. “Não dá pra inventar o novo se a mente está cheia de versões antigas de si mesmo”, costuma repetir.
Em suas palestras, Murilo fala sobre a importância de dar espaço ao ócio, à pausa e ao silêncio. Para ele, a produtividade sem respiro mata a criatividade. É preciso abrir espaço interno para que algo realmente novo aconteça. “A gente não cria quando está ocupado demais em repetir”, explica. Criar é, portanto, um exercício de desapego e de curiosidade.
Ele também fala sobre a brincadeira como estado criativo, a leveza de experimentar sem medo do erro. “Brincar com a vida é diferente de levá-la na brincadeira”, ensina. Essa leveza é o que permite enxergar caminhos onde antes só havia rotina ou medo.
Juliana, com seu ateliê de papel, e Lívia e Ricardo, com a agência de turismo, praticam essa filosofia sem saber. Juliana foi seguindo o fluxo, aperfeiçoando cada passo e se permitindo aprender. Lívia e Ricardo estruturaram o sonho com propósito, equilíbrio e constância. Ambos criaram a partir do que tinham — tempo, talento, coragem — e encontraram o próprio jeito de se reinventar.
Quando pensam em inovação, eles não pensam em máquinas. Pensam em sentido. A verdadeira reinvenção acontece quando pessoas como eles conectam o que fazem com o que são. Inovar é alinhar o trabalho à própria essência e manter a coerência entre o propósito e a vida real.
No fim, é isso que sustenta quem escolhe empreender: não só a busca por lucro, mas o desejo genuíno de criar algo que tenha sentido — e alma.
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