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Saúde Mental

Impacto das bets além do bolso e do diploma

Além de adiar a faculdade, apostadores das bets estão prejudicando a saúde financeira, mental e social

Homem jovem triste, com a mão no rosto e olhando para o celular
Entre 2023 e 2024, 30% dos brasileiros que contrataram empréstimos usaram parte ou todo o valor para apostar online, de acordo com a fintech Klavi. Foto: Freepik

Os jogos de apostas online, conhecidas como bets, deixaram de ser uma possibilidade de diversão para se tornar um transtorno para a saúde financeira, mental e social. Não é apenas o sonho da faculdade que as apostas online têm adiado. Elas estão adiando projetos, compromissos, relações e a estabilidade emocional e financeira de milhares de brasileiros. A falsa promessa de dinheiro fácil, somada à facilidade de acesso e ao marketing agressivo, tem afetado diretamente o bem-estar das famílias.

Dados da fintech Klavi, divulgados em setembro do ano passado, apontam que 30% dos brasileiros que contrataram empréstimos usaram parte ou todo o valor para apostar online. O gasto médio foi de R$ 1.113, mas há casos extremos que chegam a R$ 50 mil. Entre os perfis mais atingidos estão homens de 26 a 49 anos, com filhos, trabalhadores com carteira assinada (40%) e rendimento de um a quatro salários-mínimos (64%).

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A educadora financeira Aline Soaper alerta que “as bets apresentam um grande risco para a saúde financeira e mental das pessoas, pois alimentam a ideia de que é possível enriquecer rápido”. Segundo ela, o problema é que muitas vezes os valores apostados não são aqueles destinados ao lazer, mas sim verbas comprometidas, o que atinge todo o orçamento do mês. 

“É muito comum a pessoa começar com um cupom-promocional de R$ 500, oferecido pelas próprias plataformas, ganhar algo, se empolgar e continuar jogando. Quando percebe, já colocou o cartão de crédito, estourou o limite e precisa pagar uma conta que não consegue mais controlar”, explica. Segundo ela, a relação com o dinheiro muda: “A pessoa não vê mais o valor como recurso de troca, mas como possibilidade de multiplicar um milagre que não existe.”

Do ponto de vista emocional, os impactos são ainda mais profundos. A psicóloga Camila Wolf explica que as apostas ativam o sistema de recompensa do cérebro, semelhante ao que ocorre com as drogas, e isso cria um ciclo de prazer e dependência. “Com o tempo, o apostador entra em um padrão de busca constante por ganhos rápidos, mas o que vem com mais frequência é a frustração, a vergonha, a baixa autoestima”, explica.

Essa dinâmica interfere diretamente em projetos a longo prazo. “A pessoa perde a capacidade de adiar uma recompensa imediata, essencial para conquistas como uma graduação, uma carreira, uma casa própria. Tudo fica em suspenso, porque ela acredita que a ‘grande virada’ está sempre a uma aposta de distância”, detalha a psicóloga. 

O prejuízo não é apenas individual. Relações também são corroídas: mentiras, promessas não cumpridas, perdas escondidas. “É comum que familiares descubram débitos ou empréstimos apenas quando o caos está instalado. Há casos de rupturas, afastamentos e até pessoas que abandonaram tudo por vergonha das dívidas acumuladas com apostas”, diz Camila. 

A realidade dos atendimentos é confirmada por dados da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), que em outubro apresentou um estudo específico sobre os jogos de aposta online. No universo de cerca de 2 mil participantes, 40% dizem que familiares ou pessoas próximas fizeram dívidas por conta das apostas e destes 45% tiveram sua qualidade de vida ou da família afetada em função dessas dívidas.

O mesmo levantamento sinaliza uma preocupação ainda maior, a percepção de que as bets não são um entretenimento, mas uma possibilidade de investimento. De acordo com a Febraban, “grande parte dos pesquisados realmente acredita que as apostas possibilitam um ganho financeiro rápido (40%) ou são motivados pela chance de ganhar muito investindo pouco (11%), ideias que contrariam a cultura do esforço. Para Aline Soaper, a saída está na consciência: “A única forma segura de apostar é usar um valor que seria destinado para o lazer. Como quem escolhe ir ao cinema ou pedir uma pizza. Se esse dinheiro pode fazer falta, então não é para ser apostado”.

Jogatina responsável

O Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR), entidade criada em 2023 por plataformas de apostas online, que tem como pilares o combate ao mercado ilegal e a promoção do jogo responsável, elaborou uma lista de “boas práticas” tanto para os sites de bets, quanto para os apostadores. “As apostas esportivas e jogos online são formas de entretenimento que devem ser encaradas com responsabilidade”, informa o texto disponível no site da entidade, que alerta: “apostar sem planejamento pode acarretar prejuízos significativos. O jogo responsável exige limites bem definidos, garantindo que recursos essenciais não sejam comprometidos.”

Entre as recomendações estão a definição e o respeito a um orçamento pré-definido que não comprometa o orçamento, a limitação do tempo de jogo – inclusive evitando a prática diária -, a escolha de plataformas legalizadas (com domínio .bet.br) e a visão cética para qualquer promessa de “lucros fixos e resultados certeiros”.  

Entender que apostar não é investimento é parte do processo de educação financeira e emocional. O entretenimento, quando ultrapassa a fronteira do controle, se torna um problema de saúde pública.

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