ILEGAL

Após caso de estupro no Piauí, deputada pede que CNJ proíba que defensores ou advogados atuem na defesa de fetos; entenda

A legislação brasileira não prevê a chamada "personalidade jurídica" de um feto, portanto é ilegal a nomeação de um defensor nesse tipo de caso, explicam juristas

Após caso de estupro no Piauí, deputada pede que CNJ proíba que defensores ou advogados atuem na defesa de fetos; entenda
Foto ilustrativa: Agência Brasil

Após a notícia – veiculada pelo The Intercept e Portal Catarinas e confirmada pelo GLOBO – de que uma defensora pública foi nomeada para representar os interesses do feto de uma criança de 12 anos grávida pela segunda vez vítima de estupro, a deputada federal Samia Bomfim (PSOL) pediu para a ministra Rosa Weber, atual presidenta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que uma diretriz seja expedida pelo conselho para impedir que esse tipo de defesa seja realizado em processos judiciais.

A legislação brasileira não prevê a chamada “personalidade jurídica” de um feto, portanto é ilegal a nomeação de um defensor nesse tipo de caso, explicam juristas. Essa situação só poderia mudar caso fosse aprovado o Estatuto do Nascituro, polêmico projeto de lei que tramita na Câmara Federal.

— Essa figura jurídica do nascituro não existe no Brasil. Tentam defender a tese, mas é inexistente. Nomear defensor para defender o feto é ilegal e desrespeita o direito de acesso ao aborto legal, como é caso do estupro — explicou a deputada Samia Bomfim, em referência ao caso da menina da zona rural do Piauí, que teve seu direito ao aborto negado após uma decisão judicial que seguiu pedido de sua mãe e da defensora do feto. — Estamos pedindo ao CNJ para que tenha uma diretriz. Nem deveria ser necessário, mas pedimos que deixe explícito que não há possibilidade de deslocar advogado para defender uma figura jurídica que não existe.

“Violência psicológica”

No ofício, a deputada afirmou que a criança vem sendo “submetida permanentemente a violência psicológica decorrente do crime que sofreu e dos abusos institucionais do qual também vem sendo vítima”. O documento destaca que “permitir que nascituro tenha representação legal como se sujeito de direito fosse, para além de absolutamente ilegal, leva a colisão de direitos tal qual a observada no caso em tela”.

Além do direito ao aborto legal em casos de estupro, garantido desde 1940, não ter sido respeitado, a deputada diz que o “nascituro, que embora não seja sujeito de direito está sendo juridicamente tratado como se fosse a partir de uma decisão judicial (nomeação de defensor para realização da tutela), e cuja atuação no processo está impedindo a concretização do direito da criança vítima de estupro (pois os pedidos formulados pelo nascituro estão sendo acolhidos em desfavor da criança)”.

Em conclusão, o ofício pede que para que o “Conselho Nacional de Justiça pudesse expedir diretriz no sentido de que nos processos judiciais envolvendo criança e adolescente vítima de violência sexual ao nascituro não pode ser conferido curador para representação como se sujeito de direito fosse, nem mesmo curador para proteção dos direitos do nascituro em detrimento dos direitos da criança e adolescente que pretende autorização para interrupção da gravidez.

O advogado e professor de Direito Penal da UFF Daniel Raizman explica que “não existe amparo legal para essa nomeação da Defensoria Pública, como curadora dos “direitos do nascituro”. Atualmente, de acordo com o artigo 2° do Código Civil, não há personalidade jurídica antes do nascimento com vida. O jurista diz que isso só poderia mudar com o Estatuto do Nascituro, previsto no projeto de Lei 478/2007, que reconhece a “natureza humana e a personalidade jurídica do nascituro”.

— Tal situação poderia vir a ter efeitos sobre direitos reprodutivos das mulheres, e por isso tem recebido muitas críticas de movimentos feministas, e de entidades diversas. Todavia, trata-se apenas de um projeto de lei — afirma o jurista, que diz que podem ser anulados a atuação do defensor e as decisões que tenham ocorrido como consequência dessa atuação, no processo da menina do Piauí. — o que ainda é um simples projeto de lei não poderia se sobrepor ao que prescreve a lei penal, para os casos em que se é autorizado o procedimento do aborto.

Em nota, a Defensoria não esclareceu o motivo da nomeação, e apenas afirmou que a medida foi deferida pelo “Juízo de pedido em audiência”. Mas em um documento interno da Defensoria Pública do Piauí, ao qual O GLOBO teve acesso, é afirmado, no resumo de atuação das defensoras, que a nomeação de uma curadora do nascituro foi “requerido pela Defensora Pública presente” e “deferido de pronto pela douta magistrada”. Quando o julgamento aconteceu, não havia informações sobre a medida considerada muito incomum. O órgão confirmou que a divulgação do caso à imprensa estava proibida por envolver menor de idade e estar sob sigilo de Justiça.

Projeto terá dificuldade para avançar, avalia deputada

Nesta quarta, os novos deputados federais e senadores, eleitos em 2022, serão empossados. Apesar de um perfil considerado conservador, o Congresso terá dificuldades em aprovar um projeto de lei como o Estatuto do Nascituro nessa legislatura, acredita Samia Bomfim.

— Acho difícil que projetos reacionários como esse avancem nessa legislatura, mas haverá o esforço de parlamentares de extrema direita. As urnas elegeram um projeto de país para enfrentar questões como fome, desemprego e desmatamento, e não retrocesso no direito das mulheres. Agora também temos uma bancada feminina maior, com diferenças, claro, mas como ponto em comum não retroceder em direitos estabelecidos — disse a parlamentar.