MERCADO

Entenda por que a venda de carros seminovos disparou no Brasil

Segmento de carros usados deve bater recorde este ano e eles já são cinco vezes mais comprados que veículos novos

Entenda por que a venda de carros seminovos disparou no Brasil (Foto: Agência Brasil)
Entenda por que a venda de carros seminovos disparou no Brasil (Foto: Agência Brasil)

(O Globo) Nunca se vendeu tanto carro usado no Brasil. As revendas de automóveis devem bater um novo recorde em 2025, projeta a Fenauto, federação que reúne varejistas do setor. Com a previsão de superar 18 milhões de veículos negociados, esse mercado vai terminar o ano com alta de 15% em relação a 2024. Segundo a Anfavea, associação que reúne as montadoras, este ano, 5,4 carros usados são vendidos no Brasil para cada zero quilômetro. No ano passado, eram 4,6.

A maior procura é pelos chamados “seminovos”, carros com até três anos de fabricação. Só neste segmento, as vendas saltaram 40% nos onze primeiros meses deste ano. Juros altos e carros zero que não cabem em qualquer bolso ajudam a explicar a preferência dos motoristas pelos usados, mas executivos do setor atribuem boa parte desse movimento a um novo público: trabalhadores autônomos que atuam como motoristas de aplicativos ou entregam produtos vendidos por plataformas de comércio eletrônico.

Até a segunda semana de dezembro, 17,9 milhões de carros usados foram vendidos no país — sendo 3,3 milhões seminovos —, superando com folga os 15,7 milhões de todo o ano passado, quando esse mercado já ia bem. É o maior número da série histórica da Fenauto, iniciada em 2012.

Para Enilson Sales, presidente da entidade, consumidores que querem usar o carro para trabalhar são os que mais puxam essa demanda, como motoristas de aplicativo e entregadores, que também empregam carros de passeio na ponta final do delivery, em parceria com empresas de e-commerce.

— Com as pequenas entregas de vendas pela internet, criou-se um novo mercado para veículos com menos tempo de uso, que têm baixo custo de manutenção, capazes de fazer os pacotes chegarem aos consumidores — afirma Sales.

Estudo da Amobitec, que reúne as principais empresas digitais de logística, mostra que essa categoria de autônomos não para de crescer. Entre 2022 e 2024, houve incremento de 35% no contingente de motoristas inscritos nas duas principais plataformas de mobilidade do país, Uber e 99, chegando a 1,72 milhão.

— Sem sombra de dúvidas, hoje, esse número é maior. O crescimento permanece, pelas conversas que temos com as associadas — diz André Porto, diretor executivo da associação, observando que a última pesquisa não contabilizou motociclistas que trabalham em apps de transporte e entrega.

Jornada dupla

O aplicativo de entregas por demanda Lalamove, que tem origem chinesa e não abre os números específicos, diz que houve alta de 21%, neste ano, no número de motoristas ativos que completam remessas em automóveis pela plataforma. Muitos desses trabalhadores são atraídos pela facilidade de conseguir serviço mantendo-se on-line nos apps, o que muitas vezes vira um complemento à renda formal — é o caso de 45% deles, sugere o levantamento.

Entre os que se dedicam totalmente ao volante, muitos fazem jornada mista: transportam passageiros e, nas horas vagas, fazem entregas por meio de diferentes plataformas. E no seu tempo.

— É uma oportunidade de geração de renda, seja de fonte principal ou complementar. Com um breve cadastro, a pessoa já gera renda. E cada um cria sua rotina. Há autonomia e flexibilidade — diz Porto.

As facilidades tecnológicas e a possibilidade de assumir a gestão do tempo atraem muita gente insatisfeita com a rotina fixa dos empregos formais, diz Cristiano Dória, sócio responsável pela análise do setor automotivo da consultoria alemã Roland Berger no Brasil:

— Quando você conversa com os motoristas, eles sabem quanto geram de receita média de acordo com as horas trabalhadas. Possuem gestão própria do tempo e do trabalho e são independentes, sabendo que hora é melhor fazer entrega e que hora é melhor transportar passageiro.

O passo mais difícil para eles é ter um veículo próprio em bom estado para atuar. É aí que entra o usado, mais acessível que o zero. Além de investir num instrumento de trabalho, o carro também pode ser usado nos momentos em família.

Hugo Silva, quando não está no emprego de vigilante, acorda cedo e vai a um galpão distribuidor da Shopee na Zona Norte do Rio para embarcar até 120 encomendas em seu Ônix 2016 de segunda mão.

— Trabalho de acordo com minha disponibilidade e prefiro pequenas entregas do que dirigir por aplicativo. Corro menos risco de assaltos, de entrar passageiro estranho ou bêbado. E ganho mais andando menos — diz Silva, destacando a concentração de entregas em poucos bairros como mais atraente financeiramente.

0Km está menos popular

O vigilante até gostaria de ter um carro mais ágil e econômico para suas entregas, mas os preços altos dos veículos novos, mesmo aqueles de entrada que no passado eram chamados de populares, o afastaram das concessionárias e o levaram às revendedoras. Um Hyundai HB20, modelo hatch popular, de 2024, por exemplo, custa 28% menos que o mesmo modelo zero quilômetro, saído da fábrica neste ano, segundo a tabela Fipe.

Dória explica que há cada vez mais tecnologia embarcada nos carros novos para atender necessidades regulatórias e atrair consumidores, que hoje preferem veículos automáticos e maiores. O resultado foi o encarecimento do carro zero.

— Carro popular hoje tem muito mais exigência regulamentar e tecnologia embarcada. Quem quiser um carro mecânico tem de encomendar, porque o (câmbio) automático já é usual. E houve migração da preferência das montadoras para SUVs pequenos e médios, fazendo o preço médio subir muito — diz o consultor.

Ele lembra que o custo do seguro, a menor depreciação do valor do carro ao longo do tempo e a ausência de custos como emplacamento são outros fatores que acabam jogando a favor do seminovo na decisão do consumidor. A garantia de alguns modelos, que pode chegar a seis anos seguindo as revisões periódicas, também atrai.

As locadoras de automóveis também contribuem para o dinamismo do mercado de seminovos, com a revenda representando hoje a maior parte do faturamento das principais empresas do setor.

— Historicamente, as locadoras são as principais compradoras das montadoras. Com o aumento do preço de veículos novos, elas estão estressando um pouco mais os veículos, para até três anos de uso, e levando-os ao mercado de seminovos com preços atraentes, ajudando a inundar esse mercado — conta Dória.

Com juros no maior patamar em praticamente duas décadas, o crédito caro dificulta mais a compra do zero, mas tem sido mais amigável para usados. Até outubro, foram financiadas 3,8 milhões de revendas, bem mais que os 2,2 milhões de carros novos parcelados, segundo o Sistema Nacional de Gravames, da B3.

— Quando o consumidor vai fazer o financiamento, ele vê a parcela e se ela cabe no bolso, não vê os juros. O usado, sendo mais barato que o zero e a parcela cabendo no bolso, acaba refletindo no aumento de financiamento — diz Cintia Falcão, diretora executiva da Acrefi, que reúne instituições de crédito e financiamento.

Trava na entrada

Dharllem Rocha, de 24 anos, atua como motorista no app do Uber há dois anos para sustentar a filha de 2 anos com quem vive na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, mas não tem carro. Trabalha com alugados e já chegou a pagar R$ 700 por semana a donos de frota. Atualmente, paga R$ 400, mas avalia que, com um veículo próprio, poderia trazer mais dinheiro para casa. Para alcançar esse objetivo, ela tenta financiar um usado. Gostou de um Prisma 2015 que encontrou numa loja da Estrada Intendente Magalhães, tradicional ponto de comércio de veículos no subúrbio do Rio, por R$ 54.900, mas travou na entrada exigida: R$ 18 mil.

— Nem cheguei a ver as parcelas. Hoje, só penso em comprar meu carro para trabalhar. Como eu já pago aluguel da casa onde vivo com minha filha e o do carro para trabalhar, fica pesado juntar (o valor da entrada). Estou buscando um carro financiado para pagar por mês — conta a motorista, que já está há cinco meses visitando lojas de usados no Rio.

Leandro Silva, gerente da Apollo Automóveis, a loja visitada por Dharllem, nota que, desde 2023, é crescente o número de consumidores que dizem procurar um carro usado para trabalhar. Além de reclamar do alto custo dos zero, muitos também reclamam dos longos prazos de entrega de um novo, que podem chegar a 40 dias ultimamente.

— Aqui, o cliente chega e leva o carro no mesmo dia, assim que é aprovado (o crédito) — conta o gerente, acrescentando que utilitários do tipo SUV, como o C4 e o Kicks, tornaram-se os mais procurados. — Quem compra para trabalhar como motorista de aplicativo tem o interesse de subir o nível do carro para mudar de faixa (de remuneração) no Uber, de X para Comfort ou Black.

O aquecimento do mercado de seminovos não preocupa a indústria, afirma Andrea Serra, diretora da Anfavea:

— Não ficamos assustados porque também há crescimento nas vendas de novos — diz a representante das montadoras, cuja produção deve fechar o ano com alta de 5%, com 2,7 milhões de carros.