Depende dos outros

Falta de insumos para vacina expõe a fragilidade do setor farmacológico no Brasil

Há coronavírus de sobra de Norte a Sul do Brasil, um dos epicentros da pandemia,…

Falta de insumos para vacina expõe a fragilidade do setor farmacológico no Brasil
Falta de insumos para vacina expõe a fragilidade do setor farmacológico no Brasil

Há coronavírus de sobra de Norte a Sul do Brasil, um dos epicentros da pandemia, segundo país em número de mortos, terceiro em infectados e atrasado na vacinação. Mas faltam vírus nas fábricas nacionais de vacinas. Não há IFA, a sigla para ingrediente farmacológico ativo, para produzir as vacinas de Covid-19. E o IFA, nesse caso, nada mais é do que vírus.

E não há IFA porque o Brasil depende de vírus e outros insumos importados, dos mais básicos aos mais sofisticados. Também precisa de transferência de tecnologia e carece de instalações adequadas para produzir vacinas virais em grande escala, dizem especialistas. Além disso, fracassou no planejamento de compras.

A falta de vírus expôs a completa dependência do Brasil em insumos e tecnologias importados. Dependência que cientistas destacam ser uma ameaça não apenas à saúde pública, mas à segurança nacional, pois mostra uma extrema vulnerabilidade a insumos de outros países, em especial da China.

— O Brasil somou um problema crônico de falta de indústria com o problema agudo de falta de competência federal para planejar minimamente compras de insumos — afirma Maurício Lacerda Nogueira, professor de virologia da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP).

Segundo representantes da área farmacêutica nacional, a situação é resultado da falta de investimento em tecnologia e inovação.

— Quando se conta também IFA de um modo geral, tanto para vacinas quanto para medicamentos, há 20 anos produzíamos 50% do IFA consumido aqui, e hoje só 5% — afirma Norberto Prestes, diretor da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos.

O Brasil tampouco já desenvolveu uma vacina para uso humano. E, apesar da pandemia, os 15 grupos que procuram desenvolver um imunizante contra o coronavírus receberam cerca de R$ 15 milhões do governo federal. Os EUA, por exemplo, colocaram US$ 1 bilhão apenas na vacina da Moderna.

O país amarga dependência extrema não importa a tecnologia, observa o virologista Fernando Spilki. No caso da CoronaVac, o Butantan não tem condição de produzir o vírus inativado em grande escala. As doses entregues foram montadas no Brasil, mas o vírus veio da China.

Nação envasadora

Nas vacinas baseadas em adenovírus não replicante (AstraZeneca/Oxford, Jansen e Sputinik), assim como nas de mRNA (Pfizer/BioNTech e Moderna,) dependem de transferência de tecnologia.

— Somos envasadores de vacinas e de biotecnologia de forma geral. Tecnologia e insumos vêm de fora. A pandemia tornou dramático o que já era um problema — afirma o  presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, Flávio Fonseca, pesquisador do Centro de Tecnologia em Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

No caso da CoronaVac, o IFA é o próprio coronavírus Sars-CoV-2 inativado, fabricado pela Sinovac. Ou seja, é corpo e alma da vacina.

Já a vacina da AstraZeneca/Universidade de Oxford, cuja produção ficou a cargo de BioManguinhos/Fiocruz, tem como IFA um adenovírus símio geneticamente modificado para carregar a sequência genética da proteína S do coronavírus.

Por enquanto, o país tem vacinado somente com a CoronaVac montada pelo Butantan com vírus vindos da China. Mas, se o estoque não for renovado, não haverá vacina porque o Butantan não tem um laboratório de nível de segurança 3 de escala industrial.

Fonseca explica que o Butantan consegue apenas combinar os vírus importados com adjuvantes, igualmente importados. O Butantan só deixará de depender da importação de matéria-prima da Sinovac quando for concluída a construção da nova fábrica do instituto. A obra foi iniciada em novembro de 2020, com previsão de entrega em dez meses.

Segundo Wilson Mello, presidente da InvesteSP, responsável pela captação de recursos da iniciativa privada para o projeto, o prazo é 30 de setembro. Mas a fábrica precisará de autorização da Anvisa para operar. Só aí virá a transferência de tecnologia, prevista no contrato com a Sinovac.

— Só teremos uma produção de vacinas 100% nacional no ano que vem e isso, se tivermos sorte — afirma Renato Kfouri, da  Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Setor estratégico

Fonseca diz que já passou da hora de o Brasil ser um desenvolvedor e produtor de insumos, e não principalmente um envasador, refém de importações.

— Mesmo com o atraso de anos de falta de investimento em imunizantes, poderíamos estar em situação melhor se tivéssemos planejado importações para insumos que obviamente todo mundo sabia que teriam altíssima demanda global — frisa Fonseca.

BioManguinhos/Fiocruz tem instalações para produzir a vacina da AstraZeneca/Oxford, pois não é necessário um laboratório de nível 3, sendo o 2 suficiente. A dificuldade está na tecnologia necessária para multiplicar o adenovírus não replicante. Como indica seu nome, ele não se multiplica no organismo. Foi geneticamente atenuado para dar segurança à vacina. Sem se replicar, não pode infectar e causar doença. Porém, isso impõe um desafio à sua produção em escala industrial.

Para fazer isso, explica Fonseca, é preciso cultivá-lo em culturas de células especiais, modificadas, que dão ao adenovírus as proteínas que ele não tem para se replicar. Mas Fiocruz depende da transferência de tecnologia da AstraZeneca.

Fonseca observa que esse tipo de tecnologia é dominado pela ciência brasileira há anos. No entanto, cada imunizante tem suas especificidades, protegidas por sigilo industrial. O mesmo desafio se aplica à Sputnik. Spilki lembra que o Brasil depende de importação até para meio de cultura de células, que tem 79 ingredientes, todos beneficiados pela China.

— O Brasil poderia fazer, mas não houve investimento. E, no caso da pandemia, temos baixo poder de barganha, se comparados a países ricos, que também importam insumos, mas têm elevado poder de compra e diplomacia — observa Spilki.

Segundo Prestes, a concorrência com a China e a Índia hoje é muito difícil, mas o país precisa ter uma política de estado para o setor, que olhe para questões estratégicas.

— A gente tem que, no mínimo, desenvolver capacidade tecnológica para, num momento de aperto como este, conseguir comprar a tecnologia e implementar ela aqui mais rapidamente — afirma.