EDUCAÇÃO

“Preparar alunos para melhorar o Ideb é um erro”, diz professor

Criado pelo governo Federal, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é um indicador…

"Preparar os alunos para melhorar o Ideb é um erro", diz professor - (Foto: Arquivo Pessoal)

Criado pelo governo Federal, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é um indicador para medir a qualidade do ensino nas escolas públicas brasileiras. Para o professor da PUC Goiás, José Carlos Libâneo, de 76 anos, é um erro preparar os alunos para melhorar os dados do Ideb. Isso se justifica segundo ele, por causa da visão que sustenta o índice, que é de uma “educação voltada a resultados imediatos, subordinada exclusivamente aos interesses da economia”.

Há 54 anos atuando na área educacional, Libâneo questiona se existem garantias que as médias de desempenho dos alunos expressam qualidade da aprendizagem escolar. Entre essas e outras questões, a pandemia da Covid-19 afetou o desenvolvimento escolar  e é preciso que isso seja identificado e acolhido pela escola.

“É um erro preparar os alunos para melhorar os índices do Ideb”

Entrevista com o professor José Carlos Libâneo:

O Ideb funciona como um indicador nacional que possibilita o monitoramento da qualidade da Educação. Porque preparar as escolas para isso é um erro?

O Ideb traz dados sobre o fluxo escolar e as médias de desempenho dos alunos nas avaliações externas realizadas pelo MEC. Em minha opinião, é um erro preparar os alunos para melhorar os índices do Ideb por causa da visão que sustenta o ideb, de uma educação voltada a resultados imediatos, subordinada exclusivamente aos interesses da economia. Considero importante ter instrumentos de coleta de dados da realidade educacional para a formulação de políticas educacionais visando melhorar a qualidade da educação.

Mas quem garante que as médias de desempenho dos alunos expressam qualidade da aprendizagem?

O que sabemos é que nas escolas os alunos são preparados para responder os testes, é um ensino de memorização. Não se avalia se os alunos formam um pensamento científico, capacidade racionar, de argumentar. Além disso, no sistema de testes, o aluno pode ser aprovado sem garantir real aprendizagem, o que compromete a avaliação do fluxo escolar. Portanto, os dados coletados pelo Ideb não fornecem um retrato fiel da qualidade do ensino. Outra coisa: a quantificação dos índices de aprovação e as médias de desempenho são feitas sem considerar a realidade social e cultural das escolas e das famílias, a falta de adequadas políticas públicas, as condições de trabalho dos professores, a condição física e os recursos pedagógicos das escolas etc. Na concepção do Ideb fica valendo que a escola e os professores respondem, sozinhos, pelos resultados obtidos, o que não é justo.

Como insistir que as escolas e os professores, sem condições básicas de funcionamento, usem todo seu esforço e tempo  para melhorar os resultados do Ideb?

Para melhorar a qualidade de ensino, as políticas públicas, primeiro, precisam dar as condições objetivas como infraestrutura, condições de trabalho aos professores, formação profissional adequada, assistência material aos alunos. Por todas essas razões, a placa do Ideb com a nota da escola, é um insulto aos dirigentes da escola, aos professores e funcionários.

Muito se fala sobre a importância de elevarmos o nível de qualidade da educação no Brasil. Quais seriam as bases para esse desenvolvimento e como trabalhar as escolas e alunos para alcançar o desenvolvimento educacional sem pensar no Ideb?

Os professores precisam compreender que a sua missão não pode ser inchar os dados do Ideb, mas cuidar do desenvolvimento e do destino humano dos alunos por meio da promoção de sólidas aprendizagens dos alunos. É de contribuir para humanização plena dos alunos de modo que os conteúdos sirvam para desenvolver a autonomia do pensamento, aprender a pensar, adquirir a capacidade de refletir sobre o que acontece no mundo, com as pessoas, consigo mesmo. Em minha opinião, a qualidade da educação depende da conjugação de fatores externos e internos. São muitos os fatores a serem considerados: as políticas públicas, a remuneração dos professores, a formação profissional, as condições de trabalho, a assistência e o apoio pedagógicos aos professores na escola, um ambiente propício às aprendizagens e ao desenvolvimento humano dos alunos.

Além desses fatores externos e internos, quais são as bases desse desenvolvimento?

A visão neoliberal de educação, em plena vigência no sistema educacional brasileiro desde 1990, quer uma escola para formar capacidades produtivas por meio da preparação para o trabalho conforme interesses do mercado. É uma escola somente para formar habilidades para o trabalho, não para o desenvolvimento humano, não para desenvolver capacidades humanas. Trata-se de uma escola pragmática, utilitária, uma educação de resultados, um ensino baseado em testes e na quantificação das aprendizagens. É uma educação que visa principalmente a atender a população pobre dos países pobres. A visão progressista, ao contrário, está voltada para o desenvolvimento das potencialidades humanas dos alunos por meio dos conteúdos da ciência, da arte, da estimulação do senso crítico, da valorização da sensibilidade, do desenvolvimento de valores sociais e morais coletivos e de formas criativas de participação na vida social, profissional, cultural. Essa escola cumpre sua finalidade por meio de um currículo de formação cultural e científica, articulado pedagogicamente com a diversidade sociocultural, e diretamente entrelaçado às condições sociais, culturais e materiais de vida dos alunos. Tudo muito diferente da atual política educacional, cuja principal base é a BNCC.

Como a escola e os professores podem fazer isso?

Por meio da organização do ensino e da organização da escola. A organização do ensino diz respeito a como propiciar a cada aluno a possibilidade do máximo aproveitamento de suas capacidades humanas, mantendo-se uma base igualitária comum para aprender aquilo que é necessário aprender como condição da igualdade entre os seres humanos e, ao mesmo tempo, considerando as desigualdades sociais e escolares e a diversidade sociocultural. Quanto à organização da escola, trata-se de planejar determinadas condições sociais, institucionais e pedagógicas para criar um ambiente social e humano para a aprendizagem e desenvolvimento humano dos alunos. Eu ponho bastante peso na formação cultural e cientifica voltada para o desenvolvimento da capacidade de pensar e na relação com a vida real.  Os indivíduos precisam estar armados de saber, de tal modo que possam participar concretamente da criação de uma vida mais rica, com maior participação democrática, inclusive como condição de maior capacidade produtiva. Isso significa aprender o sentido do conhecimento para a vida,  um conhecimento teórico-prático, capacidade de aprender a lidar com diferentes situações de vida. Gosto muito de propor o que chamo de abordagem do duplo movimento no ensino, que consiste em planejar situações didáticas que possibilitem ao professor fazer interagir o conhecimento teórico-conceitual com o conhecimento pessoal, experienciado pelos alunos em suas práticas cotidianas na família e na comunidade. Desse modo, o conteúdo torna-se significativo para a criança e motivador para a compreensão tanto dos princípios teóricos da matéria quando dos problemas da prática local e cotidiana.

Com a pandemia, o modo como vemos a educação e o ensino mudou. Quais as mudanças mais perceptíveis? E como as escolas deveriam trabalhar os impactos disso?

Em minha opinião, as finalidades da escola e o papel dos professores que eu mencionei nas respostas anteriores não mudaram  e não devem mudar na pós-pandemia, ao menos para os que apostam numa educação democrática, humanizadora, emancipadora.  Inclusive eu penso que a pandemia veio reforçar a pertinência dessa visão da escola e do trabalho dos professores. As famílias sentiram no seu cotidiano a falta da escola e das professoras não somente para ensinar conteúdos, mas promover a socialização das crianças, as relações afetivas, a orientação para valores morais e comportamentos sociais.

Mas creio que a pandemia trouxe, sim, várias lições para o funcionamento da escola, por exemplo, na relação com as famílias, nos modos de ensinar, no cuidado com os sentimentos dos alunos, no uso e aproveitamento das tecnologias digitais, inclusive aprender a resolver questões imprevistas como a preparação de tarefas impressas, inventar outras práticas. No mínimo, as professoras tiveram que enfrentar antigos problemas do ensino com outras formas, como o relacionamento com as famílias, o reconhecimento do impacto da condição socioeconômica na aprendizagem, o uso das tecnologias digitais e, principalmente, o lugar das tecnologias no ensino, modos de orientação das atividades dos alunos por conta das tarefas impressas.

“Preparar o acolhimento dos alunos e diagnosticar suas dificuldades emocionais decorrentes do isolamento social e da ausência à escola”

No retorno às aulas presenciais, algumas providências precisam ser tomadas. Primeira providência, em curto prazo, realizar uma avaliação diagnóstica dos alunos para se saber o que é preciso retomar em relação aos conteúdos. Obviamente, cada escola deve verificar como ficou o planejamento de ensino de cada disciplina desde março de 2020, que objetivos foram previstos, que aprendizagens eram esperadas, e replanejar tudo a partir do retorno às aulas. Segunda providência, também em curto prazo, preparar o acolhimento dos alunos e diagnosticar suas dificuldades emocionais decorrentes do isolamento social e da ausência à escola. Muitas crianças abandonaram as aulas remotas por iniciativa dos pais, outras não conseguiram acompanhar as aulas remotas. Outras, ainda, se sentiram excluídas por não ter computador e Internet, sentindo na pele o peso das desigualdades sociais. Terceira providência, lutar pela conectividade na escola e aquisição de computadores para uso didático. Outras providências referem-se a como inserir nos conteúdos e metodologia de ensino as desigualdades sociais e a diversidade sociocultural, como dominar estratégias de mediação didática com as tecnologias, principalmente, como  buscar recursos culturais e científicos na Internet, por exemplo, museus virtuais, bibliotecas digitais, como repensar a integração entre a escola e as famílias, como assegurar na vida cotidiana da escola um ambiente social e humano de respeito, de solidariedade, de formação de valores coletivos. Penso, finalmente, que é preciso organizar na escola, entre os professores, formas de ensinar e praticar valores e atitudes, criar situações concretas para refletir sobre valores e atitudes, retomar ações da escola em relação à formação moral como solidariedade, respeito ao outro, reconhecimento das diferenças, normas sociais para a vida coletiva etc., questões tão negligenciadas ao longo da pandemia.

O Plano Nacional da Educação, faz parte do bloco de metas estruturantes para a garantia dos direitos à educação básica com qualidade. Acredita que isso seja suficiente para a educação ter um desenvolvimento esperado?

Eu acho que a existência de um Plano Nacional de Educação é muito importante, ele estabelece as bases da política educacional, define questões de financiamento público, critérios de qualidade social da educação. Assim pode estabelecer, na legislação, o atendimento do direito à educação e à aprendizagem para todos. O Plano Nacional tinha tantas qualidades que autoridades do governo e políticos do Congresso Nacional, desde o golpe político de Temer de 2016, interessados no desmonte da educação pública, tomaram medidas para a inviabilização do cumprimento das metas estabelecidas nesse Plano. Os grandes cortes orçamentários  e a exiguidade de recursos a serem destinados à educação levaram à ampliação das carências históricas da educação brasileira, em particular nestes momentos de crise sanitária, econômica e social. Mas a existência do Plano, por si só, não assegura o ensino de qualidade conforme os princípios que já mencionei.

“Um Plano Nacional de Educação, por si só, não é suficiente para promover uma educação de qualidade”

Nesse tipo de documento, as declarações sobre o direito à educação e qualidade de ensino são genéricas e difusas, sem referência aos objetivos explícitos da escola e a ações pedagógico-didáticas dirigidas ao que realmente importa quando se fala em práticas educativas: a organização da escola e do ensino visando aprendizagens consolidadas. Sem um projeto de escola que defina finalidades educativas, qual é o sentido de ampliação da jornada escolar? Como deve lidar pedagogicamente com as desigualdades sociais e a diversidade sociocultural, a escola fica reduzida a adereço das políticas sociais, ou seja, o sentido de qualidade social dilui-se numa ideia vaga de educação para superação das desigualdades e do reconhecimento e respeito à diversidade, dentro de um projeto social de combate à pobreza muito mais próximo de razões econômicas do que sociais e pedagógicas, bem ao gosto dos organismos internacionais ligados ao capitalismo globalizado.  Eu quero dizer, então, que um Plano Nacional de Educação, por si só, não é suficiente para promover uma educação de qualidade, é preciso cuidar do funcionamento interno da escola, da organização pedagógica e didática.