Especial Dia da Mulher

Carne Doce: de tiete a frontwoman

Para um desavisado, a Carne Doce poderia ser só mais uma das dezenas de bandas…

Para um desavisado, a Carne Doce poderia ser só mais uma das dezenas de bandas independentes de Goiânia. Mas, para quem tem um ouvido mais atento, logo vai perceber algo diferente. Com letras sobre sexo, homossexualidade, feminismo, aborto, preconceito e muito mais, a banda bota o dedo – mas com jeitinho – em diversas feridas.

Não é à toa que o grupo se tornou uma das bandas mais populares do circuito alternativo brasileiro, fazendo algumas mini-turnês por aí, passando por São Paulo, Minas e agora estão prestes a visitar o Rio Grande do Sul pela primeira vez: “Vamos para o Rio Grande do Sul dar uma passeada lá pela primeira vez. Há tempos queríamos ir, acho que vamos dar certo com o público de lá. Temos planos de voltar pro Sul de novo em breve, pra rodarmos mais. Precisamos ampliar nosso território. Temos outros shows marcados em São Paulo, Rio e BH e estamos torcendo por uma viagem internacional no segundo semestre”, conta a vocalista Salma Jô.

Com dois discos no cinturão – Carne Doce, de 2014 e Princesa, de 2016 – à frente disso tudo está a frontwoman Jô que segura a onda não só no gogó, mas como letrista e com forte presença de palco. Para celebrar este Dia da Mulher, conversamos com Salma sobre a bronca de ser roqueira no que muitas vezes é um clube do Bolinha e ainda cantar sobre temas complexos.

Carne Doce ( Foto: Rodrigo Gianesi)

“Sinto que é uma responsabilidade ainda maior compor e performar agora que temos esse público e visibilidade. Me critico mais e sou mais criticada. Mas sei que o desafio de compor música boa ainda está relacionado à autenticidade, à sinceridade e entrega pessoais, aos mesmos princípios do começo”, conta.

Sobre as letras, Salma não se vê como poetisa, mas conta que é impossível não se envolver com temas políticos: ” pensar política realmente me instiga e diverte e até me conforta. Desde o primeiro EP em muitas letras eu estou falando sobre o poder como um exercício que circula nas nossas relações pessoais e públicas, e também desde sempre estou falando de mim, faço da música terapia e biografia, tem esse lance egocêntrico”.

Para a cantora, falar destes temas é natural e uma reflexão do nosso tempo: “Eu gosto desses temas porque fico confortável com eles. Falar mais de feminismo e sobre uma perspectiva de gênero em Princesa foi um reflexo natural dos tempos que estamos vivendo, nas discussões frequentes sobre o assunto, combinados com isso que está virando o meu estilo de fazer letras”.

E não é para menos. De acordo com ela, toda sua influência musical veio da música nascida nos Anos de Chumbo. Sua musa e principal inspiração? Elis Regina: “Elis é a maior inspiração. Pela excelência, interpretação, emoção, pelo timbre, pelo repertório que cantou. Os compositores que a rodeiam, essa MPB engajada dos anos 60/70, tá aí a minha base e o que formou o meu gosto pra escrever as letras”.

Salma em show lotado da Carne Doce (Foto: Rodrigo Gianesi)

Salma se apresenta mais auto-consciente do que a média. Ao falar sobre política e engajamento, ela percebe não apenas um racha, mas rachaduras dentro das rachaduras: posições e argumentos que não fazem sentido, contradições e paradoxos. “Acho que no cancioneiro atual nacional nós rockeiros, indies, etc, estamos meio perdidos quanto ao tema da política. Certo engajamento parece datado, brega, outro fica elitizado, não atinge, não é entendido”.

Esta confusão atinge em cheio, inclusive, suas canções: “Parte das minhas letras foram muitas vezes interpretadas de maneira rasa porque a polarização atinge as críticas”. Questionada se percebe uma carência de ídolos, mais ainda de ídolos femininos, Salma diz perceber algo assim.

Porém, acha que chama mais atenção por sua presença de palco do que pelas suas letras propriamente ditas: “É um momento instável para dar opinião e ao mesmo tempo sinto sim que tem muita gente carente de posicionamentos e de ídolos e por isso todos esses comentários superlativos de ‘lacre’, ‘hino’. Mas às vezes sinto que minha presença no palco, explosiva, feliz, forte (coisa que não sou) talvez seja mais impressionante e positiva para as mulheres do que as minhas letras”.

Sobre machismo, ela conta que já sofreu, como toda mulher, mas que nunca foi vítima de nada que ela considera grave, mas chama a atenção que machismo é algo tão dominante que não vem só dos homens: “Nunca sofri uma violência grave, mas pequenos golpes. Coisa que ainda não disse quando me perguntam isso é que, dos atos de machismo que mais me irritaram, metade vieram de mulheres”.

(Foto:Rodrigo Gianesi)

Já na internet, ela conta que sempre existem ataques por causa do anonimato, mas nada de grande monta: “sempre virtualmente, nunca pessoalmente porque as pessoas são covardes demais pra isso. Fui chamada de hipócrita por fakes anônimos, já tive de explicar letras, já me disseram que sou uma péssima feminista, etc… é tranquilo”.

Mesmo assim, Salma não vê sua posição como militante ou de significativo engajamento, apenas de alguém cantando boa música. Se essas canções tocarem alguém profundamente, ótimo: “Eu até sei que posso atingir as pessoas dessa maneira tão profunda, e é maravilhoso quando isso acontece. Mas eu não tenho essa pretensão, não sou militante. Meu objetivo é fazer música boa, emocionar, divertir”.

Para o Dia da Mulher, ela faz votos de esperança para que mais mulheres tenham acesso a áreas, campos, oportunidades e atitudes que até agora foram muito restritas: “Creio que oferecer mais oportunidades às mulheres no cenários onde a entrada delas é mais difícil, dar espaço ao seus talentos, incentivá-los é o melhor que individualmente podemos fazer”.

Mensagem esta que reflete a própria trajetória da cantora: “Eu passei muito anos sendo apenas tiete, fã, ouvinte, nunca crendo que poderia criar algo. Foi preciso que primeiro me pegassem pelo braço e compusessem comigo, foi preciso e ainda preciso de parceiros que me deem oportunidade de às vezes até brilhar mais que eles, mesmo errando mais, para criarmos algo bonito em conjunto”.