Crítica

Luke Cage traz cultura negra para o mundo dos heróis

Novo seriado Marvel manteve o padrão de qualidade, mas não surpreende

Entre o final dos anos 1950 e o final dos anos 1960, os EUA viveram um momento conhecido por lá como o Movimento dos Direitos Civis. Se trata nada menos de uma série de revoltas, passeatas, desobidiência civil e paralisações por parte da população negra em busca de direitos iguais.

Embora a escravidão tenha acabado por lá em 1865 com o final da Guerra Civil, até mais da metade do século XX negros e brancos viviam efetivamente separados com uma série de segregações e humilhações sistemáticas. Negros e brancos não podiam sequer compartilhar o mesmo banheiro ou transporte público.

Após anos de luta e o martírio de grandes nomes como Malcolm X e Martin Luther King (líderes mais famosos do período), começou outro longo e árduo processo de unificação e combate ao racismo. Afetados pela mudança, se discutia na mídia questões de representatividade.

Foi no meio deste turbilhão e deste contexto que a Marvel criou o seu segundo super-herói negro: Luke Cage, o Herói de Aluguel. Antes de sua criação, a Cada das Ideias parou para pensar: quais questões afetam e incomodam os jovens negros americanos? O que eles querem ver em um herói?

Na época, a brutalidade policial era uma resposta pronta e que inspirou a editora desde o início: vamos criar um negro à prova de balas.

Mais de 40 anos depois, o mesmo personagem chega à televisão em meio à campanha #BlackLivesMatter (vidas negras importam) conforme os casos de assassinato de negros inocentes por policiais nos EUA bate novos recordes.

Tudo isso é pra dizer que a representatividade é a melhor parte de Luke Cage, nova série Marvel que estreou no último dia 30 na Netflix. A série vive e respira a cultura negra nova-iorquina do Harlem sem ficar fechada demais para alienar quem não sabe nada sobre ela.

Seu segundo ponto mais forte é como isso contribui para que a primeira temporada seja, em essência, bastante fiel às HQs originais, o que é uma alegria para os leitores da Marvel. O ator Mike Colter reprisa com maestria o papel do personagem título e que já havia tido um papel significativo na primeira temporada de Jessica Jones.

Luke Cage é um cara durão com um coração enorme que é forçado a sair das sombras para proteger e defender as ruas do Harlem que ele tanto ama e para mostrar para a juventude que existe um caminho para a vida fora da criminalidade. Para isso, ele precisa limpar o lixo do bairro.

Sem entregar nada, a temporada possui alguns vilões flutuantes, sendo o primeiro deles o gângster Boca de Algodão. Aqui começam os problemas da série. Todos os seus vilões e problemas são, de modo geral, sem graça, embora os personagens sejam bem construídos.

Depois do Demolidor enfrentar o Rei do Crime e ninjas imortais e Jessica Jones enfrentar um sádico com controle mental, botar Luke para estapear um bandidinhos comuns parece tirar o impacto, a importância dos vilões.

O próprio Boca de Algodão é monocórdio, desperdiçando o talento do ator Mahershala Ali, um dos maiores atores negros da atualidade nos EUA. O personagem só ganha um certo tempero quando parte do seu passado é revelado, mas ele nunca tem a chance de desabrochar em um super-vilão.

A melhor vilã da série é, sem dúvida, sua prima, a vereadora Mariah Dillard. Boa parte disso é devido também à atuação de primeira da atriz Alfre Woodard, que consegue equilibrar o temperamento da personagem, sua veia política e sua veia criminosa sem ficar caricata.

A personagem ofusca com facilidade Boca de Algodão e com mais facilidade ainda o suposto grande malvado desta temporada, Kid Cascavel, que chama a atenção por ser um personagem violento e desequilibrado, mas não genial e nunca uma ameaça significativa.

Além da representatividade étnica (praticamente todos os personagens da série são negros, latinos ou asiáticos), assim como Jessica Jones, a série marca pontos feministas por suas personagens e passa com louver no teste Bechdel.

Fora Mariah Dillard, o destaque fica por conta da policial Misty Knight, vivida por Simone Missick. Misty é uma personagem incrível e completa. Ela é durona, cabeça quenta e ao mesmo tempo calculista que usa a vida policial como uma armadura. Conforme a temporada avançada, seu precioso sistema é prejudicado, permitindo que o público veja uma Misty vulnerável e indecisa.

Enfim, a Marvel manteve a qualidade esperada com Luke Cage, mas a série não consegue superar as suas irmãs Jessica Jones e muito menos Demolidor. Ela cumpre muito bem o seu papel de apresentar um dos maiores e melhores heróis negros para toda uma nova geração pelo mundo, mas faz pouco mais além disso. Ela termina cheia de pontas soltas para a próxima temporada, o que é ótimo, e também nos premia com duas ótimas personagens mulheres e negras.