Crítica

O Apartamento: trauma, catarse e choque de culturas

Cineasta Asghar Farhadi consegue entregar um filme mais direto e melhor que 'A Separação', vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro

A 10ª edição da mostra O Amor, A Morte e as Paixões, com curadoria do professor Lisandro Nogueira, já começou com alto impacto. Ela foi aberta por O Apartamento, filme iraniano indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O drama é dirigido por Asghar Farhadi, vencedor do Oscar por A Separação e diretor do também excelente O Passado.

Ao contrário dos filmes citados, O Apartamento tem uma premissa mais direta. A trama acompanha o casal Emad e Rana que precisam encontrar um lugar para morar da noite para o dia quando o prédio em que moram ameaça desabar. Emad, professor e ator, consegue um quebra-galho na forma de um apê do colega de trupe Babak.

Eles se mudam, mas tudo vira de cabeça para baixo quando Rana é atacada enquanto está sozinha no apartamento. As coisas já seriam ruins por si só, mas na sociedade profundamente machista e com regras morais rígidas do Irã, a vida do casal se vira de cabeça para baixo.

Como sempre, o filme explora, em primeiro lugar, o choque cultural da sociedade iraniana para com o ocidente assim como as complicações de suas regras morais e simbólicas. Rana, naturalmente, fica em péssimo estado após o caso e a reação de Emad vai parecer ao público brasileiro como indiferente: o marido parece se distanciar da esposa enquanto ambos se tornam desonrados aos olhos da vizinhança. A única forma de limpar sua honra e da esposa é encontrando o agressor desconhecido.

Além do estranhamento causado pelos costumes iranianos e pela forma com que lidam com a dor e a tragédia, o filme é marcado, especialmente, pela forma como lida com o trauma. É um filme sobre trauma, acima de tudo. Sobre ser invadido, em sua alma, em seu corpo, em seu sentimento de segurança. É sobre a revolta, a frustração que todos sentimos quando somos vítimas da violência. Claro que tudo isso ganha camadas quando temos Rana, uma mulher, como vítima em uma sociedade patriarcal e teocrática.

Porém, o assunto é bem dirigido por Farhadi. Filmes sobre violência não são novidade, mas O Apartamento, mesmo se passando em uma sociedade completamente diferente da nossa, parece ter os pés mais firmes no chão. Seus similares hollywoodianas costumam ser melodramas baratos e de pouca importância. Um fato curioso é que este é o segundo filme no Oscar sobre a temática de invasão doméstica e violência contra mulher: o outro é Elle, de Paul Verhoeven.

O último ato do filme, embora seja o mais lento, talvez seja o mais interessante e que mais irá alimentar discussões. Nas versões hollywoodianas, filmes de vingança possuem uma alta dose catártica: o vilão é sempre um ser desprezível, rastejante, que merece a carga emocional e o alívio da violência retribuída nas mãos do mocinho. Ou seja, algo que nunca acontece na vida real.

O Apartamento brinca com isso, virando toda a catarse da vingança igualmente de ponta cabeça de forma brilhante. Não podemos entregar mais nada, mas é possível se discutir por horas sobre o último ato deste filme que se recusa a botar preto no branco.

Por fim, é necessário reconhecer o amadurecimento de Farhadi como cineasta. Embora O PassadoA Separação sejam filmes excelentes e O Apartamento seja mais simples em comparação, o último é muito mais filme. Os dois anteriores sofrem com problemas graves de ritmo, podendo ser dolorosamente lentos em alguns momentos. O que mais sofre é A Separação, se passando inteiramente em um ambiente fechado, claustrofóbico, e com diálogos sobre diálogos intermináveis. É cansativo.

O Apartamento, por outro lado, é muito mais diverso, recheado de personagens, e fluido. Seu enredo parece se desenrolar com maior naturalidade e desenvoltura. É um filme longo e que passa voando, nem se percebe todo o tempo que se passou no escuro. Esta fluidez está nos planos de Farhadi, em suas cenas bem montadas e em uma edição bem-feita.

Para fins de dar um aval completo, vale mencionar que o elenco também está no ponto: tanto os intérpretes de Rana (Taraneh Alidoosti) e Emad (Shahab Hosseini) quanto o elenco de apoio entregam suas performances na medida certa. O filme não tem trilha sonora, então toda a emoção está nos rostos e nas falas.

Fica nossa recomendação: se tiver o tempo, confira na mostra mais este indicado ao Oscar.