Estados entram na Justiça contra decreto de Trump que veta cidadania a filhos de imigrantes irregulares
Secretários de Justiça de 22 estados americanos afirmam que o republicano não pode mudar um entendimento constitucional com uma 'canetada'

Secretários de Justiça de 22 estados americanos entraram na Justiça nesta terça-feira para barrar o decreto assinado pelo presidente Donald Trump que proíbe o direito à cidadania por nascimento, assegurado na Constituição, a filhos de imigrantes em situação irregular nos Estados Unidos. A medida foi uma de uma série de políticas migratórias instituídas no primeiro ato do republicano na Casa Branca, que incluiu a declaração de emergência na fronteira com o México e a suspensão de um aplicativo que facilitava a regularização do status de solicitantes de asilo.
A queixa, apresentada no Tribunal Distrital Federal de Massachusetts, foi acompanhada pelas cidades de São Francisco e Washington, D.C. Inicialmente, 18 estados haviam entrado na ação, mas outros quatro resolveram aderir posteriormente.
Os estados consideram a tentativa de Trump de limitar a cidadania inata como “extraordinária e extrema”, disse o secretário de Justiça de Nova Jersey, Matthew J. Platkin, que liderou o esforço legal junto com os procuradores-gerais da Califórnia e de Massachusetts.
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— Os presidentes são poderosos, mas ele [Trump] não é um rei. Ele não pode reescrever a Constituição com um toque de caneta — defendeu Platkin.
Na segunda-feira, nas primeiras horas de seu segundo mandato como presidente, Trump assinou uma ordem declarando que futuras crianças nascidas de imigrantes sem documentos não seriam mais tratadas como cidadãos. A ordem se estenderia até mesmo aos filhos de algumas mães que estão no país de forma regular, mas temporariamente, como aquelas com visto de estudante ou turismo.
O decreto de Trump afirma que os filhos desses não cidadãos não estão “sujeitos à jurisdição” dos Estados Unidos e, portanto, não estão cobertos pela garantia constitucional de longa data da 14ª Emenda.
A ordem de Trump orienta as agências federais a não emitir documentos de cidadania para essas crianças, com início em 30 dias. No entanto a política contraria a garantia, consagrada na Constituição americana há mais de 150 anos, de que qualquer pessoa nascida nos Estados Unidos é automaticamente um cidadão americano, independentemente do status migratório de seus pais. Na época da sua formulação, os tribunais reconheceram apenas uma pequena exceção: filhos de diplomatas credenciados.
Como a cidadania por nascimento é garantida pela 14ª Emenda da Constituição, tal ordem deve enfrentar grandes desafios legais. Qualquer mudança na Constituição requer votos de supermaioria no Congresso e, em seguida, a ratificação por três quartos dos estados. Ou seja, um presidente não pode alterar a Constituição por conta própria.
Divisão no Judiciário
No entanto, há sinais de que o Judiciário pode se dividir sobre a questão. O juiz James C. Ho, que Trump nomeou para o Tribunal de Apelações do Quinto Circuito dos EUA, tem sido mais simpático a alguns dos argumentos de Trump, comparando os imigrantes não autorizados a um exército invasor. Essa comparação também foi feita por advogados do estado do Texas e pelo próprio Trump, que alega que as travessias ilegais na fronteira sul equivalem a uma “invasão contínua”.
Ainda assim, esse tribunal de recursos não julga casos originados em Massachusetts, e é improvável que outros tribunais sequer considerem os argumentos do governo Trump sobre interpretação constitucional sem uma nova lei do Congresso, disse Gerard Magliocca, professor da Escola de Direito Robert H. McKinney da Universidade de Indiana. Ele citou casos recentes em que a Suprema Corte decidiu que o Poder Executivo não pode tratar sozinho das maiores controvérsias políticas, conhecidas como “questões importantes”.
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— Se isso se aplica aos empréstimos estudantis ou às regras da Covid-19 ou qualquer outra coisa, é de se esperar que também se aplique à cidadania — disse ele. — Os estados estão certos e os tribunais provavelmente concordarão com eles.
No entanto, a ideia de que a Suprema Corte pode, em algum momento, considerar persuasivos os argumentos para restringir a cidadania por nascimento “não é mais risível”, disse Amanda Frost, professora de Direito da Universidade da Virgínia e especialista em Direito de Imigração e cidadania.
Limitar a cidadania por nascimento foi a posição consensual entre os candidatos presidenciais republicanos na eleição passada, e pelo menos um juiz federal indicou disposição em considerar a questão.
Ao ordenar que órgãos federais neguem documentos que afirmam a cidadania, como cartões de Seguro Social e passaporte, o governo Trump está, efetivamente, ordenando que os filhos de imigrantes em situação irregular sejam excluídos de serviços governamentais como escolas públicas, assistência médica, benefícios nutricionais e de habitação.
Outros países têm cidadania por nascimento
Trinta e três países e dois territórios — quase todos no Hemisfério Ocidental, incluindo México e Canadá — têm cidadania por nascimento irrestrita semelhante à dos Estados Unidos, de acordo com um levantamento do World Population Review. Outros 40 têm versões restritas do direito. Pode aplicar-se, por exemplo, apenas a filhos de residentes legais ou de pais nascidos no país. Ou pode excluir refugiados.
Vários países que, como os EUA, tinham tradições de cidadania por nascimento universal enraizadas no Direito consuetudinário inglês — incluindo Reino Unido, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia e Índia — restringiram ou aboliram o direito nas últimas décadas.
‘Turismo de nascimento’
A cada ano, milhares de mulheres grávidas de outros países entram nos EUA com visto válido, dão à luz filhos que automaticamente ganham a cidadania americana e depois levam os bebês de volta para casa ou para um terceiro país. A prática, chamada de “turismo de nascimento”, é legal desde que a mãe obtenha o visto de forma verídica e cumpra seus termos.
Trump e seus apoiadores, no entanto, reclamam de gestantes que entram no país para dar à luz ao que eles chamam depreciativamente de “bebês-âncora” — crianças cuja cidadania americana daria à família acesso a benefícios públicos e uma base para residência legal.
O Migration Policy Institute estima que, em 2019, cerca de 4,7 milhões de crianças nascidas nos Estados Unidos com menos de 18 anos viviam com um dos pais sem documento — cerca de 7% de todas as crianças no país. Mas estudos descobriram que a grande maioria dessas crianças não cruzou a fronteira ainda no útero.