Oito em cada dez professores de escolas públicas já presenciaram bullying em sala de aula
A pesquisa também mostrou que metade dos mais de 395 mil docentes ouvidos se deparou com casos de discriminação nas instituições de ensino

Camila (nome fictício), de 11 anos, chegou da escola completamente encharcada. Há tempos a menina vinha apresentando comportamento preocupante: estava cada vez mais triste, com crises de ansiedade, e dizia que não se achava inteligente nem bonita. Mas aquele dia de chuva, no início deste ano, foi especialmente dolorido. Forçada por colegas de classe, a criança foi obrigada a esperar o ônibus fora de uma área coberta — um caso grave de bullying, prática que oito em cada dez professores da rede pública relataram, em levantamento do Ministério da Educação (MEC), ter presenciado em sala de aula no ano de 2023.
A pesquisa também mostrou que metade dos mais de 395 mil docentes ouvidos se deparou com casos de discriminação nas instituições de ensino. Essa é a segunda vez que o Inep, responsável pelas estatísticas educacionais do governo, inclui essas perguntas, feitas a professores de mais de 70 mil escolas.
Para piorar o cenário, ainda há o risco de o dado estar subestimado, como destaca a especialista Luciene Tognetta, líder de um grupo de estudos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) sobre convivência na escola e violência.
— É uma violência que não é cometida na frente dos professores. O aluno que humilha ou discrimina outro faz isso diante de um outro público, um grupo social em que ele busca respeito, do qual o professor não faz parte — afirma.
Os dados, recolhidos pelo questionário destinado a professores de Português e Matemática na aplicação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), apresentam um cenário de escolas enfrentando graves conflitos de relacionamento — algo similar ao que se viu na série “Adolescência”, sucesso da Netflix. Eles mostram que somente 23% relataram não haver bullying (caracterizado pela pesquisa como ameaças ou ofensas verbais) em sua escola naquele ano, enquanto 59% disseram haver poucas vezes, 16% muitas vezes e 2% informam que sempre há casos desse tipo.
Aluna de 6º ano, Camila vive o período em que mais professores relatam haver bullying (o segundo ciclo do ensino fundamental) e na rede com a maior incidência do problema, a do Distrito Federal. Lá, apenas 12% comunicaram não conviver com essa modalidade de violência em sala de aula.
— O que mais me doía era a atitude da direção do colégio. Uma das secretárias chegou a recomendar que a gente registrasse o roubo do estojo da minha filha em uma delegacia, dizendo que ela não podia fazer nada — conta o pai de Camila, que agora é ex-aluna do Centro de Ensino Fundamental Caseb, escola pública mais antiga do DF, e teve a identidade preservada pelo GLOBO para não ser exposta. — Começou com um afastamento, uma pressão para que as outras colegas não interagissem com a Duda. Mas foi evoluindo, e aí começaram ameaças de agressão física, atitudes humilhantes.
Em nota, a secretaria de Educação do DF informou que o caso foi acompanhado pela equipe pedagógica que, segundo a pasta, “prestou o suporte necessário”. A direção da unidade nega a orientação para registro de ocorrência e diz permanecer à disposição para esclarecimentos.
“A pasta reitera que casos de bullying são tratados com seriedade pelas equipes escolares, com escuta das partes envolvidas, diálogo com os responsáveis e, quando necessário, aplicação de medidas pedagógicas conforme o regimento. A secretaria também atua de forma integrada com outros órgãos e mantém formações contínuas para profissionais da rede, com foco na cultura de paz, mediação de conflitos e prevenção ao bullying”, acrescenta a nota.
A pesquisa também mostra que 44% dos entrevistados disseram ter havido casos de discriminação poucas vezes durante o ano; outros 7% dizem que aconteceu muitas vezes, e 1%, sempre. O segundo segmento do ensino fundamental também é a etapa com mais professores relatando o problema, assim como o Distrito Federal aparece como recordista, com só 32% relatando que não presenciaram nenhum caso em 2023.
Moradora de Viamão, no Rio Grande do Sul, uma jovem de 25 anos viu o irmão de 10 passar por pelo menos quatro episódios de racismo numa escola municipal. Segundo ela, o menino já ouviu que não pode participar da banda por ser preto, enquanto outra pessoa afirmou que tinha nojo do garoto por conta da cor da pele. Procurada, a prefeitura não respondeu aos questionamentos da reportagem.
— Meu irmão tem passado por isso desde o ano passado. Fica triste, tem crises de ansiedade, mas antes só me contava. Agora está agressivo quando acontece e briga — conta a parente do aluno, acrescentando que a família registrou ocorrência na polícia. — Mas até agora nada. E tanto a diretora quanto a professora não fazem nada para mudar isso, a não ser assinar uma ata.
Cenário preocupante
A pesquisadora Luciene Tognetta lembra que o ano de 2023 ficou marcado como um dos que mais registrou ataques a escolas — o mais extremo sintoma de crise de convivência na educação. Além disso, foi também o primeiro ano de volta às aulas plenas depois da pandemia da Covid-19, e ainda o que computou, pela primeira vez na história do Sistema Único de Saúde (SUS), mais casos de ansiedade em crianças e adolescentes do que em adultos. No entanto, ela não acredita que o problema tenha arrefecido em 2024 e 2025.
— Demoraremos muito para superar toda a crise causada pela pandemia. Além disso, por conta da crise sanitária, vivemos uma aceleração nas mudanças de uso da tecnologia que nos obriga a repensar os enfrentamentos desses problemas. Retiramos os celulares das escolas, mas os jovens continuam resolvendo suas tretas pelo WhatsApp — explica.
Na avaliação de Tognetta, o Brasil precisa criar uma orientação nacional que organize as ações para promoção da convivência nas escolas. A pesquisadora acrescenta que, atualmente, há apenas algumas unidades de ensino que conseguiram organizar um plano intencional e sistematizado para trabalhar com o tema, assim como se faz com Português e Matemática, por exemplo.
— Há escolas que têm planos, com formas de protagonismo ao estudante, comunidades de cuidado e apoio, uso de linguagem e comunicação não-violenta. Mas são ilhas de excelência, propostas artesanais. Falta ao Brasil, infelizmente, uma política pública para combater o problema — lamenta a especialista.
*Informações do portal O Globo