Sotaque goiano: entenda a origem do ‘R’ caipira, também chamado de retroflexo
PoRta, poRteira, poRtão.... o R puxado é herança antiga e está por várias cidades do país
Quem já rodou pelo interior — especialmente por cidades de Goiás — certamente já ouviu o famoso “R caipira”, marca forte do sotaque goiano e também conhecido como R retroflexo. Esse som puxado em palavras como porta e carta não é apenas um traço regional: ele carrega séculos de história e vem de influências indígenas que moldaram o português falado no Brasil.
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O R retroflexo nasceu de interferências linguísticas da antiga Língua Geral Paulista, de base tupi, muito usada nos séculos 17 e 18. A pronúncia retroflexa surgiu como adaptação do modo de fala indígena e, com o avanço do português sobre essa base, o som característico acabou sendo incorporado ao falar caipira. O processo se intensificou com o isolamento de comunidades rurais e a consolidação de dialetos regionais.
Eduardo Batista, coordenador do curso de História da UniCesumar, lembra que o fenômeno tem raízes diretas no período colonial. “O R caipira não é erro ou deformação. É resultado histórico legítimo da mestiçagem linguística brasileira”, explica.
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Origem indígena
Antes de o português se consolidar como língua dominante, o contato entre indígenas, colonizadores e africanos criou uma mistura que deixou marcas profundas na fala popular. Rosane de Mello Santo Nicola, professora de Sociolinguística da PUCPR, reforça que o R caipira é resultado direto dessa influência tupi-guarani. “O /r/ retroflexo surge da interferência das línguas indígenas faladas amplamente até o século 19 na região de São Paulo”, afirma.
Os colonizadores trouxeram o vocabulário e a estrutura do português; os indígenas influenciaram a pronúncia; e os africanos ajudaram a difundir essas características no convívio cotidiano. O historiador Eric Cruz destaca que a antiga língua geral se dividia em duas: o nheengatu, ainda falado na Amazônia, e a Língua Geral Paulista, que deu origem ao dialeto caipira.
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Mesmo com o decreto do Marquês de Pombal, em 1757, proibindo línguas indígenas, os traços fonéticos já incorporados permaneceram. O tupi tinha sons e ritmos muito diferentes do português, e essas adaptações acabaram fixadas em vários sotaques regionais — especialmente no interior paulista, onde o contato foi mais intenso.
Expansão e “sumiço” nas cidades
O R retroflexo se espalhou pelo caminho dos bandeirantes, alcançando Goiás, Mato Grosso, sul de Minas e Paraná. Sobreviveu com força nessas regiões porque ficaram por muito tempo mais isoladas, mantendo tradições linguísticas rurais.
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A professora Nicola explica que o som retroflexo nasceu no “quadrilátero do açúcar” — Campinas, Piracicaba, Sorocaba e Tietê — e seguiu pelas rotas de povoamento. Com a urbanização e a influência da mídia, o som perdeu espaço nas grandes cidades, onde pronúncias alveolares e guturais se tornaram mais prestigiadas.
Ainda assim, nas pequenas cidades e na zona rural, o R caipira segue firme, especialmente entre pessoas mais velhas, e hoje até ganha destaque como símbolo cultural em músicas e movimentos ligados ao universo sertanejo.
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Preconceito e identidade
O R caipira, além de uma marca fonética, também representa desigualdades históricas. Com o avanço das cidades, o modo de falar urbano passou a simbolizar status e escolaridade, enquanto o falar do campo começou a ser visto com preconceito.
Para o historiador Eric Cruz, esse julgamento tem origem no olhar urbano sobre o interior. “O R caipira é uma das heranças mais resistentes das línguas indígenas no português brasileiro”, afirma. Já Nicola reforça que o estigma não é linguístico, mas social: as formas de fala associadas ao campo foram vistas como sinais de atraso, enquanto o português urbano foi valorizado como padrão de prestígio.
Hoje, porém, o sotaque goiano e o R retroflexo ganham novo reconhecimento, sendo valorizados como parte da identidade cultural de quem vive — e fala — como o Brasil profundo ainda ecoa.
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