SEM COMEMORAÇÃO

Aumento de solicitações de medidas protetivas marca o Dia das Mulheres em Goiás

Mais uma vez o Dia das Mulheres é marcado pela violência doméstica em Goiás. Mais…

O aumento de pedidos de medidas protetivas marca o Dia das Mulheres em Goiás. Em 2020, foram mais de 22 mil solicitações. (Foto: e Nino Carè por Pixabay )
O aumento de pedidos de medidas protetivas marca o Dia das Mulheres em Goiás. Em 2020, foram mais de 22 mil solicitações. (Foto: e Nino Carè por Pixabay )

Mais uma vez o Dia das Mulheres é marcado pela violência doméstica em Goiás. Mais um ano em que o 8 de março reforça a necessidade de reflexão e mudança, além de revelar o pouco a se comemorar nesta data. A violência física, moral e psicológica, juntamente com o feminicídio, ainda assombram as mulheres goianas. O ‘boom‘ de pedidos de medidas protetivas solicitadas por mulheres vítimas de algum tipo de violência dá indícios do tamanho da problemática. O saldo negativo é de 22.973 solicitações em 2020, isto é, uma média de 62,93 pedidos por dia, conforme dados do Tribunal de Justiça (TJ-GO).

As medidas protetivas são mecanismos de proteção da mulher que viveu ou vive em contexto de violência doméstica. Elas foram estabelecidas na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 2006) e têm como objetivo interromper, prevenir, proteger e preservar a saúde física, mental e psicológica de pessoas em situação de risco.

A explosão de pedidos de medidas protetivas é assustadora e demonstra um cenário pouco animador para todo o território goiano. Em 2020, foram 10 mil solicitações a mais do que o registrado em 2019 – 12.507. No primeiro ano da pandemia do novo coronavírus e que as vítimas passaram a ficar ainda mais tempo com agressores por conta do isolamento social, quase 30 mil mulheres precisaram de uma ordem de afastamento para ficar em segurança e até mesmo evitar o maior nível da violência, o feminicídio.

Em 2021, somente no mês de janeiro, foram 1.477 pedidos. O aumento exorbitante das mencionadas solicitações acompanha a escalada de casos registrados tanto de violência física, quanto de feminicídio no estado. Em 2018, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP-GO), 2.976 mulheres foram vítimas de lesão corporal no âmbito da violência doméstica. Em 2019, o número foi de 2.976. No ano seguinte, foram 10.938 casos.

Também houve crescente com relação ao número de feminicídios em Goiás. De acordo com a pasta, 36 mulheres foram mortas baseadas na condição de gênero, em 2018, nas cidades goianas. Um ano depois, 40 mulheres tiveram a vidas ceifadas por companheiros ou ex-companheiros. Já em 2020, o número subiu para 45.

 

 

(Foto: Arquivo/Agência Brasil)

Do sonho ao pesadelo

A professora Maria de Fátima (nome fictício para preservar a identidade da vítima) engrossa a triste estatística de mulheres que passaram por situação de violência doméstica e precisaram de uma ordem de afastamento para continuar vivas. Aos 24 anos de idade e quase 1 ano de relacionamento, Maria passou por situações que jamais imaginou viver.

Ela conta que o início do namoro, no final de 2019, foi tranquilo, fato que durou pouco, por cerca de apenas dois meses. Para quem estava de fora os sinais eram claros. Ciúme exagerado, proibição de amizades e postagens nas redes sociais, controle de roupas, acessórios e até maquiagem. Para a mulher, no entanto, tais atitudes pareciam um ‘cuidado extremo’, mas com base no amor que o então namorado dizia sentir.

As violências, segundo ela, eram sutis no começo e foram avançando gradativamente. “No início, ele brigava comigo por tudo, mas eu dizia para mim mesma que aquilo era normal de relacionamento. Depois, começou a me “aconselhar” a vestir determinada roupa, não passar maquiagem escura, usar colares ou brincos chamativos porque era feio e eu combinava com coisas mais discretas”, disse.

O tempo passou e o então casal “juntou as escovas de dentes”. As tensões aumentaram. Vieram episódios de chantagem, humilhação e terror psicológico. “Ele conseguiu me afastar de todos os meus amigos. Eu falava muito pouco com meus pais e irmãos. Ele me taxava como a errada e louca sempre. Dizia que fazia tudo por amor e queria o meu bem e eu acreditava”, relembrou emocionada.

“Achei que ia morrer”

De acordo com Maria, a violência aumentou e chegou ao ponto da agressão. “Lembro como se fosse hoje. Ele viu um comentário de um amigo no facebook e se revoltou. Me jogou no chão e deu vários chutes e socos por todo o meu corpo. Achei que ia morrer”, contou à reportagem.

A mulher relatou o ocorrido para a mãe e foi encorajada a romper o relacionamento e denunciar o crime. O primeiro conselho foi acatado. O segundo, porém, foi deixado de lado. “Eu achava que tinha sido um erro esporádico. Não queria continuar o namoro, mas não achava que ele era perigoso”.

Os dois meses após o término foram “infernais”. “Ele não aceitava o fim. Me mandava mensagem praticamente todos os dias. Falava que se eu não fosse dele não seria de ninguém. Passou a me seguir e me procurar no trabalho. Foi aí que vi que corria perigo e decidi denunciar”, afirmou.

Segundo a professora, logo após a registrar boletim de ocorrência na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), a delegada solicitou ordem de afastamento do agressor. De acordo com o relato, a decisão acerca da medida protetiva foi rápida e o ex-namorado foi impedido de se aproximar e de manter contato com a mulher.

“Só depois disso eu tive “paz”. Alguns familiares dele chegaram a me procurar e pedir para que eu revogasse a medida. Não o fiz por medo. Ainda tenho sequelas desse relacionamento. Desenvolvi ansiedade e síndrome do pânico. Não consigo confiar nas pessoas e não quero iniciar outro namoro tão cedo. Infelizmente, ninguém conhece ninguém e as mulheres nunca estão seguras”, disse.

Efetividade das medidas protetivas

Além da ordem de afastamento do suposto agressor, as medidas protetivas podem determinar uma série de ações para garantir a integridade da vítima (vide infográfico abaixo). Entre elas, estão a proibição de estar no mesmo local que a vítima; restrição ou suspensão de visitas aos filhos menores; comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação etc. Elas podem ser aplicadas juntas ou separadamente.

Para a promotora de Justiça Rúbian Corrêa, apesar das inúmeras críticas, as medidas protetivas são efetivas e dão proteção imediata à vítima, para que ela saia do ciclo da violência, que pode agravar e chegar ao grau máximo, o feminicídio.

Segundo ela, a pandemia intensificou a violência doméstica e promoveu maior dificuldade de denúncia e possibilidade de solicitação de medida protetiva. “O distanciamento social fez com que as vítimas ficassem mais tempo isoladas e em contato direto com o autor da agressão. Ao mesmo tempo, por conta do lockdown e fechamento dos órgãos, dificultou o pedido de socorro”, comentou.

Rúbian conta que, no início da pandemia, houve diminuição das solicitações de medidas protetivas e aumento do feminicídio. “Como a vítima pede socorro se está o dia todo com o agressor? Ficou bastante difícil nesse sentido”. Mas, conforme ela, a publicização de campanhas e divulgação dos canais de atendimento online auxiliaram as mulheres no processo de denúncia e saída da situação de violência.

“Ainda está complicado por conta da pandemia, mas não é impossível. Meu recado às mulheres em situação de perigo é que nos procurem ao menor sinal de violência. As medidas protetivas dão um alento, uma oportunidade de segurança e a sensação de poder recuperado, sem medo de viver”, pontuou.

Como solicitar

A promotora explica que o processo para se obter medidas protetivas tem rito simples para facilitar a proteção da vítima. As solicitações podem ser feitas pela autoridade policial – delegadas (os) – após o registro de boletim de ocorrência; pelo Ministério Público e Defensoria Pública.

(Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil)

O pedido também pode ser feito pela própria vítima nos juizados ou em qualquer um dos órgãos já citados. “As mulheres que se sentirem em situação de ameaça e perigo podem chegar nestes locais, relatar o que está acontecendo e fazer a solicitação. O juiz não precisa ouvir ninguém para conceder a medida. O objetivo é justamente a proteção imediata”, afirmou.

Atualmente, por conta da Covid-19, as vítimas podem procurar os mencionados órgãos virtualmente, ligando ou enviando mensagens no WhatsApp (veja quadro abaixo). As mulheres também podem procurar a Polícia Militar, discando 190, ou a Central de Atendimento à Mulher pelo 180.

Falhas e pedidos de revogação

A promotora ressalta que as medidas têm fundamental importância na segurança das mulheres, mas ainda apresentam algumas falhas. “A Lei Maria da Penha é muito recente e a estrutura de tais medidas precisa ser melhorada, principalmente no que se refere às casas de proteção. No entanto, não podemos ter ideia negativista. Nós que trabalhamos diretamente escutamos pelas próprias vítimas que as medidas salvaram suas vidas”.

De acordo com ela, porém, o ciclo da violência – aumento da tensão, ato de violência e arrependimento – ainda faz com que muitas vítimas revoguem as medidas protetivas. “Em um dos casos que atendi, a vítima, após agressões, teve recaída e pediu a revogação. Na audiência, ela contou que deu uma segunda chance e o agressor, assim que ficou sabendo da revogação, voltou a agredi-la. Ela chegou a ficar de cadeira de rodas e disse que se arrependeu amargamente”, disse.

Dados da Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) enviados ao Mais Goiás mostram que, somente em 2021, 88 vítimas já procuraram o órgão para solicitar a revogação da ordem de afastamento. Em janeiro, foram 40 revogações e 38 em fevereiro. No mês de março, até o dia 5, foram 10.

À reportagem, a defensora pública Gabriela Hamdan diz que as vítimas assinam um termo de próprio punho e dão as mais variadas justificativas. “Falam que não sentem mais medo, que querem reatar o relacionamento ou simplesmente viver em harmonia por conta dos filhos. É o ciclo da violência que mexe com o psicológico das vítimas. As medidas protetivas são efetivas e a gente entende como errada a revogação, visto que as mulheres que possuem alguma medida geralmente são as que menos entram nas estatísticas do feminicídio”, comentou.

Andamento jurídico

A promotora de Justiça Rúbian Corrêa pontua que é necessário que a vítima de violência conheça e esteja consciente acerca do processo jurídico em torno das medidas protetivas, da apuração do crime e do andamento do caso na Justiça.

Neste sentido, há ao menos três possibilidades para o início das investigações e/ou pedido de medida protetiva. Em uma delas, a vítima denuncia a agressão e faz o registro de boletim de ocorrência em uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). A autoridade policial pode solicitar a proteção, apura os fatos e envia o inquérito ao Ministério Público.

O MP, por sua vez, oferece a denúncia e o juiz recebe a ação. Nesta etapa, ocorre a citação do autor da violência e o Ministério Público é ouvido sobre o caso. Há, então, a fase de instrução, com a ocorrência da audiência de instrução. Vítima, autor e testemunhas de acusação e defesa são ouvidas. Há debates orais ou memoriais. Após isso, o juiz profere sentença. Vítima e suposto autor são informados.

Também é possível que o caso seja investigado diretamente pelo MP. O processo de oferecimento de denúncia e julgamento é o mesmo. As vítimas também podem solicitar as medidas protetivas ou atendimento em razão de violência através da Defensoria Pública, Ministério Público e nos próprios Juízos. Por conta da pandemia, os atendimentos têm sido online. Confira os números de cada órgão na tabela abaixo.

A luta continua

Para a defensora pública Gabriela Hamdan, o processo para romper a violência é histórico e lento. Segundo ela, a luta deve ser no sentido de desconstruir a cultura de inferiorização e submissão da mulher em detrimento do homem.

“Isso deve ocorrer principalmente na maneira como criamos as crianças. As mulheres são criadas com dispositivo amoroso, com o ideário de casamento. Elas são ensinadas a amar os homens. Eles, por sua vez, são ensinados a amar as coisas, a serem viris e ligados ao dispositivo do trabalho. Modificando isso, certamente mudaremos essa cultura machista e vamos conseguir reduzir esse triste cenário”, afirmou.

No mesmo sentido, a promotora Rúbian também defende a educação e mudança cultural como libertadoras do ciclo da violência doméstica. “Um avanço cultural demora, mas estamos no caminho. Temos de ter olhar para a situação da mulher, mas sob a ótica de várias cores e não só da branquitude. Oportunizar mulheres, dar acesso à Educação e à empregabilidade. É preciso debater o assunto, buscar melhorias e não deixar só para falar sobre a violência doméstica somente no Dia das Mulheres e Dia das Mães, assim como ter acolhimento e união”

“A Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio vieram para ficar. Tivemos avanços, mas temos muito o que alcançar. Precisamos ter crédito nas leis e cobrar mais políticas públicas de nossos gestores”, concluiu.