Em busca de alívio

Famílias goianas lutam pelo acesso à maconha medicinal

Algumas gotas do óleo extraído de uma planta, proibida e estigmatizada durante quase um século,…

Ivo Suzin tem alzheimer e faz uso de maconha medicinal
Ivo Suzin e esposa melhoria significativa após uso de maconha medicinal (Foto: Arquivo pessoal)

Algumas gotas do óleo extraído de uma planta, proibida e estigmatizada durante quase um século, podem mudar a vida de famílias inteiras. O extrato da cannabis, popularmente conhecida como maconha, tem devolvido qualidade de vida para enfermos acometidos por Acidente Vascular Cerebral (AVC), alzheimer, doença de Parkinson, Esclerose Múltipla, alguns casos de câncer, doenças auto-imunes, contraefeitos da quimioterapia, entre outras casualidades. Famílias goianas lutam na Justiça para ter acesso aos benefícios da planta.

Um caso emblemático é do “seu Ivo”. Acometido por alzheimer, Ivo Suzin, de 58 anos, teve seu quadro neurológico, físico e motor degringolado rapidamente pela doença com a qual convive desde os 52. A vida do filho e da mulher, até então bem remediada, se transformou num pequeno inferno doméstico. Agressividade, vigilância constante, terrores noturnos. Dar um simples comprimido, a hora de dormir ou a alimentação exigiam doses cavalares de paciência e amor.

O filho de “seu Ivo”, o empresário Felipe Barzan Suzin, adoeceu junto. O stress gerado pelo contato com as crises do pai o levou a um quadro de depressão. Ele não podia sair de casa, pois tinha que ficar de prontidão, já que a qualquer momento o pai poderia agredir a mãe em um dos acessos de raiva. Até que tudo mudou. Conheceu um médico que o apresentou a possibilidade de acesso ao óleo extraído da maconha e começou a ministrar no pai. “Com quatro dias deu resultados. Ele conseguia segurar um prato. Coisa impensável antes”, exulta.

Medicamento feito a partir da maconha usado por "seu Ivo" (Foto: Arquivo Pessal)

Medicamento feito a partir da maconha usado por “seu Ivo” (Foto: Arquivo Pessal)

A Planta

O tratamento passou a ser realizado com o extrato completo da planta. Ou seja, o óleo com o tetra-hidrocanabinol (THC) e demais substâncias presentes na maconha. Isso quer dizer que são produzidos a partir de planta inteira, com toda a química presente. É um óleo estigmatizado, assim como a maconha, pois possui efeito psicotrópico. No entanto, é ele, segundo as pesquisas, que ajuda no tratamento das doenças neurológicas, em sua maioria.

Felipe chegou a ministrar em seu pai o óleo isolado, sem o THC, com o canabidiol (CBD). Só que o quadro de “seu Ivo” regrediu. Sobretudo na agressividade. “Os benefícios vieram com óleo com o extrato completo. Não tem comparação”, diz. A melhora de Ivo nos 11 meses de tratamento é notável e atiçou a curiosidade de muita gente, inclusive de outros países. Um vídeo publicado no Instagram viralizou com a alegria do filho e do pai diante dos avanços do tratamento.

O clínico geral João Carlos Normanha explica que o extrato isolado não tem efeito sinérgico, ou seja, não tem o poder associativo das substâncias que a planta inteira possui. Por ser estigmatizado, alguns pacientes fazem o uso deste tipo de substância. No entanto, o processo de extração é mais complicado e mais caro. “O óleo com o THC é muito mais eficaz, menos tóxico e atua no cérebro. É fácil a analogia, a vitamina C é o CBD e a laranja é a planta inteira”, explica.

O Tratamento

O tratamento com a cannabis no Brasil é feito pelo uso compassivo, ou seja, quando se esgotam as alternativas na terapêutica medicamentosa atual, pode-se utilizar de alternativas ainda não regulamentadas. Para isso é preciso que haja consentimento do paciente e de seu responsável legal. Essa é a brecha que as famílias usam para conseguir utilizar a maconha para tratamento das doenças. 

João Normanha é o médico que apresentou a Felipe a possibilidade de tratamento do “seu Ivo” com o óleo da maconha. Dele e de outros 100 pacientes. Ele explica que o papel dele como prescritor deste tipo de tratamento é indicá-lo no momento correto, em casos pelos quais já existem publicações indicando benefícios. 

O médico não faz o diagnóstico da doença em si, o paciente precisa levar a ele o laudo com o diagnóstico já indicado por especialista. O que ele faz é trabalhar em conjunto com o médico assistente para encontrar um balanço entre o benefício da alopatia (medicina tradicional) e da fitoterapia, que aparece no tratamento por meio da cannabis

As patologias sobre as quais mais existem pesquisas e comprovações científicas dos efeitos benéficos da maconha são nos casos de dores crônicas, fibromialgia, enxaqueca, transtorno do espectro autista, epilepsia na infância e no adulto, ansiedade, insônia, depressão, doenças neurodegenerativas como o Alzheimer e Parkinson, Esclerose Múltipla, Intestino irritável, doenças auto-imunes, efeitos da quimioterapia e alguns casos de câncer. As pesquisas são realizadas principalmente nos Estados Unidos, no Canadá e em Israel.

“Hoje acompanho mais de 100 pacientes no Brasil, e é um acompanhamento social, não cobro pela consulta e minha atividade é filantrópica na Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Agape). Lembrando que são “laços” vitalícios, porque em geral são doenças sem tratamento efetivo ou  cura”, explica Normanha.

A Legalização

O horizonte para pais, filhos, mães e amigos de pacientes é a legalização da maconha no Brasil. No entanto, a discussão ainda se arrasta no país, sobretudo em um ambiente que parece turvo de preconceito e interesses que nem sempre primam pela objetividade que a ciência oferece. Mas a vida é urgente e familiares lutam com as armas que possuem. 

K. é um deles. Com filho com epilepsia, partiu para a produção própria e para-legal do medicamento. Comprou equipamentos necessários estudou cultivo e a melhor forma de extração. Viu melhora quase imediata e não se arrepende, mesmo sob risco de prisão. Ele não quis se identificar e tem medo de represálias.

O risco, por se tratar de um produto extraído de uma planta proibida, no entanto, faz com que outros pais e familiares se juntem e busquem a liberação na Justiça. A Anvisa permite solicitação de importação de medicamentos controlados sem registro no país, inclusive de produtos à base de canabidiol, em associação com outros canabinóides, dentre eles o THC. No entanto, não parece atender à necessidade das famílias, pelo valor e demora no acesso.

Para suprir esse lapso, o advogado Yuri Ben-Hurd da Rocha Tejota fundou a Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Agape), que também surgiu de uma necessidade pessoal – a mãe teve um AVC e apresentou sequelas fortes, como agressividade e dores – e hoje atende mais de 100 famílias que buscam o acesso ao extrato.  

Yuri explica que a associação funciona desde o acolhimento do paciente, explicando o que é a cannabis medicinal, com equipe multidisciplinar de agrônomos, farmacêuticos, advogados e médicos. A partir daí o paciente pode entrar com um habeas corpus individual para cultivo, ou então entrar no grupo de cultivo associativo.

Familias beneficiadas pela Agape (Foto: Agape/ Divulgação)

Familias beneficiadas pela Agape (Foto: Agape/ Divulgação)

“Explicamos que a maconha medicinal não é crack, é segura e defendemos o que é o certo: o uso da planta toda”, explica Yuri. “Utilizei na minha mãe e deu muito resultado; na área neurológica, a capacidade de distinguir as coisas, de se comunicar, melhoraram substancialmente. A capacidade de se expressar, a confusão mental, a depressão e  agressividade cessaram”, diz.

Felipe diz que a maneira ideal para acesso ao medicamento seria a legalização da maconha no Brasil. Ele explica que entre o álcool e o cigarro, que são permitidos, a única que tem eficacia medicinal é a maconha. “E é a única também que não é permitida. Quanto mais legalizada e permitida mais segurança a gente tem. Todo mundo pode ter algo de qualidade e o governo pode controlar o acesso melhor, melhorando a qualidade. A legalização é medicinal, mas também social”, reforça.

Somente a Agape possui fila de espera para mais de 200 pessoas de todo o país e vive de doações. A associação se inspira na Abrace Esperança, da Paraíba, que fornece apoio jurídico para quem precisa de acesso à maconha medicinal, e se prepara para entrar na Justiça para a liberação de cultivo e extração. 

Audiência pública

Em busca de ampliar o debate com a sociedade, a Câmara Municipal de Goiânia promove nesta quarta-feira (21), a partir das 18h, audiência pública sobre o uso medicinal da maconha. Membros da Agape, médicos, farmacêuticos, pesquisadores e familiares debatem o uso da medicação em Goiás.

 “Desde que seja para uso medicinal, a cannabis medicinal é sugerida para órgãos públicos. Ao meu ver devemos priorizar o uso para tratar as doenças, teremos a oportunidade de opinar e ouvir os pacientes e médicos que fazem uso”, explica o vereador Lucas Kitão (PSL), que propôs a audiência. 

Infografico

Fonte: Drauzio Varela