Caminho da Adoção

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial em Goiás

“Tenho 12 anos. Sou a mais velha. Minha mãe me trancava em casa, com minhas…

“Tenho 12 anos. Sou a mais velha. Minha mãe me trancava em casa, com minhas irmãs. Os vizinhos que nos levavam comida. Às vezes eu dava a comida a elas e ficava sem comer, porque choravam com fome, mas eu já era grande, e aguentava esperar”. O depoimento que começa esta reportagem é de uma menina encantadora. A criança aguarda por uma família em um residencial de Goiânia. O local é dedicado a quem teve os direitos violados, ou que foram rejeitadas de alguma forma. Ao total, vivem lá 32 crianças, de zero a doze anos.

Apesar de o local abrigar essa quantidade de crianças, nem todas estão aptas para adoção. A maior parte delas está lá temporariamente. Isso acontece quando, por algum motivo, a Justiça determina que a família tenha o direito de guarda interrompido. Não são todos os casos em que o vínculo familiar é destituído.

A menina que dá o depoimento que inicia esta reportagem está apta a ir para a casa de uma outra família, que lutou há anos para adotar, em um processo judicial demorado e burocrático, no Juizado da Infância e Juventude de Goiânia. A irmã do meio também foi adotada pela mesma família. Elas poderão conviver juntas, inclusive podem ser levadas para a nova casa a qualquer momento, mas ainda não saiu a guarda da terceira, irmã mais nova de apenas um ano e meio.

O Mais Goiás visitou o Residencial Niso Prego, na Região Norte da capital. A terceira irmã da menina, que deixava de comer para dar comida às outras, andava entre crianças da mesma faixa etária. Com cabelos loiros, cacheados, pele branca e olhos claros, ela estava no playground. Tentava montar uma frase inteira, mas não passava de balbucios.

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

No colo do repórter, com as mãos empoeiradas, porque estava na caixa de areia brincando, a menina passa a mão no rosto de quem nunca viu. Ela só quer dar e receber carinho. É preciso respirar fundo para continuar com objetividade que o jornalismo requer.

A família que busca na Justiça a autorização para não separar as três meninas é da capital, e os profissionais que trabalham no abrigo não podem, por questão profissional, dizer muitos detalhes sobre o perfil, e como tentam esse trâmite. A irmã mais velha, inclusive, teve de passar por um tratamento psicológico para atenuar o sentimento materno e a obrigação de cuidar das outras duas. Como ficam separadas pela doutrina do local, a mais velha não almoçava, até que fosse levada para dar mamadeira à mais nova e ter a certeza de que ela estava alimentada.

Demora tende a ser menor, com nova lei que regulamenta adoção de criança

Em Goiás, são 196 crianças e adolescentes aptas para adoção. Isso representa 2,1% dos 8.947 em todo o país, segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Do outro lado de um processo judicial, estão 1.388 famílias interessadas em todo o Estado. O número é 3,1% dos 44.123 em todo o Brasil.

Demora e burocracia distanciavam os candidatos de crianças aptas. O processo é longo, criterioso e que dificultava os direitos de quem estava apto a integrar uma nova família. A legislação que regulamentava sobre essa temática sempre procurou a preservação dessas crianças. Os candidatos à adoção não podiam ter contato algum antes de iniciar um processo judicial.

“A demora para adoção está ligada diretamente à forma de preencher os dados no CNA e à falta de informação que os propensos pais adotivos têm. Os candidatos precisam preencher um perfil, mas não sabem quais crianças e adolescentes estão aptos a serem adotados na própria cidade. Sem conhecer essa realidade, dão os dados com base no próprio juízo de valor e nos sonhos que têm. Até que o Poder Judiciário encontre esse mesmo perfil de criança leva um longo tempo”, explica a presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional Goiás (OAB-GO) Bárbara Cruvinel.

Com a nova lei para adoção, sancionada em novembro de 2017, essa demora tende a ser menor. A norma muda o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e muda os prazos para o processo de adoção. Desde a inscrição, entrega de documentos, visitas, laudos psicológicos e decisão judicial, tudo agora tem um prazo mais reduzido. O início do processo, que não tinha limite de duração, e era o que mais gerava incerteza, hoje tem até 120 dias prorrogáveis pelo mesmo tempo para ser concluído.

Há critérios que são indispensáveis para a avaliação da família candidata, e não podem ser ignorados. O objetivo é fazer com que essa criança esteja bem cuidada, e tenha a garantia que vai compor uma família íntegra e estruturada, que oferecerão os cuidados com base no ECA.

Com a demora do processo e a dificuldade de casar perfis descritos no CNA — que só permite o preenchimento uma única vez, sem possibilidades de correção — além do processo que define se a família biológica é destituída ou não do poder da criança, muitas vezes, meninos e meninas ficam anos vivendo em abrigos e com a esperança de um dia encontrar um lar.

“Ela vive aqui há dois anos, desde que nasceu, e nós entramos com o processo para adoção em 2013. Há dois meses nos ligaram e disseram que nossos perfis batiam. Viemos conhecer e eu já sei desde que a conheci que ela é minha filha”, diz o técnico em eletrotécnica, Marcelo Jacinto, sobre uma criança apta a adoção. Ele e a esposa, a farmacêutica Katiuscia Nascimento, já têm três filhos — o primogênito, com 11 anos e gêmeos, que estão com sete.

O Mais Goiás acompanhou uma visita da família ao Residencial Niso Prego. Eles tinham a determinação para cumprir uma quantidade determinada de visitas, estabelecidas pelo poder Judiciário. O pré-adolescente e os dois irmãos, junto com a menina, não tinham diferença de tratamento pelo casal. Todos os três se tratam pelos apelidos de forma carinhosa. Atentos e cuidadosos, os jovens estão sempre alertas para qualquer descuido da irmã.

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Ela nasceu prematura por questões que não foram ditas em nenhuma das entrevistas, afim de preservar a menina. Com dois anos de idade, a garota não tem peso e altura de uma criança da mesma idade. Inteligente e curiosa a tudo o que se passa, ela aproveita a nova família durante o tempo que ficam, aproximadamente duas horas e meia, e é perceptível em Marcelo o quanto sente ao deixá-la após a visita. “Eu estou deixando uma filha para trás, e isso corta o coração de qualquer pai”, diz.

Katiuscia estava no trabalho e chegou ao final da visita. Perguntada acerca do que ela achou quando viu a filha pela primeira vez, a mulher foi enfática: “Nossas almas já se conheciam, só faltava mesmo esse reencontro”. O coração da mãe, apertado ao deixar a menina no abrigo após o curto prazo que tinha de visita até o Residencial fechar, estava com uma esperança. “Espero que o processo seja concluído o quanto antes, e que a Justiça nos permita levá-la para casa. Sei que aqui eles cuidam muito bem, mas toda mãe quer dar um cuidado diferente.”

NOTA – Cinco dias após a entrevista ser concedida, a menina enfim chegou em casa. Ela agora é, de fato e de direito, filha de Marcelo e Katiuscia, e irmã dos gêmeos e do jovem e carinhoso rapaz de 11 anos. A família agora é composta por cinco, e terá duas opiniões femininas.

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Para brasileiros, adoção ainda é forma de preencher berços vazios

No Brasil, a adoção ainda é vista como um tema residual, segundo advogada Bárbara Cruvinel. “Na maioria das vezes, as famílias decidem adotar uma criança depois de exauridas todas as tentativas de procriação. Ou seja, quando um casal, uma pessoa, uma família, tenta todas as formas e não consegue ter um filho da ‘forma convencional ou artificial’, aí sim, pensam em adotar”, diz.

Para a jurista, a adoção ainda precisa ser encarada pela sociedade brasileira como uma opção de composição familiar. A ideia, segundo Bárbara, vem da criação dos brasileiros. “A gente não vê uma criança dizendo ‘vou ter um filho adotivo e dois biológicos’. Isso não é ensinado. É uma situação quase que impositiva de nossa sociedade ensinar que uma família é composta por ligação biológica”, sublinha.

“O processo de adoção não é uma busca de uma criança para uma família que precisa preencher esse espaço vazio. Na verdade, é uma chance de encontrar uma família para uma criança que não teve a oportunidade de ter”, disse a presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-GO.

“É preciso muito amor”

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

A coordenadora do Residencial Niso Prego, localizado no Goiânia 2, região norte de Goiânia, Camila Xavier, é apelidada pelas crianças moradoras do local. O nome dela só é aceito como forma de tratamento para quem não vive lá. Porque para todas as crianças e pré-adolescentes do residencial, é Tia Camila, ou simplesmente ‘mãe’. Ela assina como responsável de todos, inclusive, nas escolas que “os meninos”, como são chamados, estudam. Até que saia decisão judicial para adoção, os colegas têm Camila como mãe.

“Elas precisam de muito pouco. E o que a gente pode dar para elas é muito pouco. Mas para elas é o mundo”, diz, emocionada. Camila tem duas filhas biológicas. Durante o período em que a reportagem esteve no Niso Prego, suas duas meninas estavam juntas às outras que vivem no local. Elas estão de férias da escola e decidiram passar alguns dos dias de recesso no residencial.

O lanche da tarde foi refrigerante e pipoca, em um refeitório que fica ao centro das “casas de meninos, meninas e bebês” — duas estruturas para os dois gêneros de cinco a 12 anos e uma, para bebês até que completem os cinco.

Camila já trabalhou em uma escola e  em um Centro Municipal e Educação Infantil (Cmei). “Não é o dinheiro que a gente ganha aqui que move a gente. É o coração mesmo; é a vontade de fazer diferente, a vontade de ser a diferença na vida delas”, confessa. A profissional diz ainda o quanto as crianças chegam no Residencial dependentes. “Chegam aqui por vários motivos, desde abandono, violação dos direitos, ou outras causas”, diz.

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Robson Azevedo, secretário de Assistência Social da prefeitura de Goiânia (Semas), tenente-coronel licenciado da Polícia Militar de Goiás e médico ortopedista foi ao Niso Prego a pedido do Mais Goiás. Em contato com as crianças, o homem mais parecia um deles.

“Ofertamos a estas crianças a dignidade que lhes foi roubada”, afirma o secretário na última resposta da entrevista. O secretário, que serviu em ação humanitária no Haiti após o terremoto de 2010, relembra de dois projetos da Semas: Colo e Carinho, que proporciona a voluntários da própria instituição ir até as crianças para proporcionar uma visita em que são trocados carinhos e atenção; e o Apadrinhamento, em que as crianças podem ir para a casa do padrinho, passar o final de semana e algum feriado.

Assim, as crianças e adolescentes têm um vínculo — lembrando que para ser parceiro e passivo desses dois projetos, o voluntário tem de estar cadastrado, e sob o aval judicial. “Passando essa etapa legal, tudo se transforma em amor, e uma possibilidade de afeto muito grande, e isso pode se tornar uma possibilidade de adoção.”

Camila pondera que essa não é uma forma de “pular” a fila do CNA. “Pode ajudar, mas é uma questão de criar vínculos, e não de passar na frente de quem está na fila”.

 

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)

Para cada criança apta a ser adotada, sete famílias esperam autorização judicial (Foto: Wellington Tourão / Mais Goiás)